segunda-feira, 29 de março de 2010

O GUARDA-ROUPA ALEMÃO - Lausimar Laus

O GUARDA-ROUPA ALEMÃO

O armário. Tinha sido, toda a vida, o seu grande problema. Naquela tarde, o canto escuro. O armário. Sua forma geométrica. Seu senso geométrico. Seu espelho geométrico.

— Por quê? Por que ainda o armário?

Não sabia. Havia dias e horas de multidões e mutilações. Sabia que em cada segundo lhe ia faltando uma partícula a mais, cá dentro. Mutilação perfeita. A alma se es¬vaziando. Tudo se ia soltando a esmo.

Procurou, na manhã imperfeita, o sinal, O acordar: era o morrer. O próprio sentido do fim. O sinal se perdera ao acaso. E como viver sem o sinal?

Levantou a cabeça para o reflexo tênue, meio azulado. A madrugada chamava para a angústia. Que era, afinal, angústia? Aquilo denso. Compacto. Tinha lembranças de como foram outros dias simples. Por que não voltar a ser aquele recipiente? Um vaso de flores? Claro. A mesma aparência viva na massa vítrea. O gesto solto para os outros.

Ele perdera o sinal. Sabia que era para sempre. Sem remédio.

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Os cabelos, perpendicularmente. Os olhos oblíquos. Linhas, linhas, linhas. Até as rugas do meio da testa: um freio mostrando o esforço. Não importa. O pensamento cria ou¬tras veredas. Não é fácil perguntar, quando nada se res¬ponde.

Ethel: O rosto ali no espelho. A forma octogonal da transparência furando escombros. O tom escuro do jacarandá: O passaporte.

Começava a delinear-se a figura da bisavó. Ela gosta¬va de olhar-se dentro do octógono de cristal. Uma moldura transparente. Tinha um aspecto místico. Os olhos. Os lábios. O cabelo. Aquele tom dourado na face. Os dois semi-círculos negros, como sinais além do mar misterioso e inquieto.

A bisavó, O armário. Duas coisas já distantes e tão perto. Como uma corda afogando. Quando veio a segunda guerra, a bisavó vendera os velhos móveis. A porcelana. Os cristais. Só ficara o armário.

— Por que o armário, Grossmuter?

— O armário, não. Ele vai ficar para sempre. Para sempre.

Não sabia. A forma desencontrada do armário. Quase quatro metros de altura na sala grande. O chalé fora cons¬truído pelo padre Bernardo Melcher. Também, só a doidice do padre Meicher podia ter construído um troço daqueles. Sabia-se que era um chalé, pelo telhado da frente forman¬do um triângulo de telhas vermelhas. O mais era um amontoado de arquitetura normanda, misturando-se com as linhas das velhas casas dos colonos alemães. O padre Melcher, como todos o chamavam, apesar de há muito ter deixado a batina e se botado para o Brasil. O certo é que o homem louro, forte, de olhos profundos e azuis, podia ser

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tudo: O médico, o padre, o construtor, o mestre, e o era realmente.

Homig sentou-se. Ali defronte estava ele: o Kleiderschrank, o Kleid. Era assim que a família chamava o velho guar-da-roupa, para economizar esforço nas sílabas ásperas. Há cem anos sua história começara na Alemanha. O velho Ziegel o trouxera no frágil barco da travessia dos mares, com outros móveis e as vistosas roupas da Baviera.

— Sim sr., Kleiderschrank...

— O mesmo Kleid! Linhas sóbrias. Alto. Quase tocando o teto. Triangular. Muito imóvel, para ser um móvel. Seu costado, um triângulo, parece ter sido feito exatamente pa¬ra aquele canto do casarão colonial à moda da antiga Baviera, depois que se derrubou o velho chalé da arte complicada do padre Melcher, e ele se levantou na paisagem. Fora K!eid o amigo mais fiel do velho Ziegel. Desde a sua papelada de imigrante até os últimos assentamentos das demarcações da linha telegráfica. Depois, os papéis de casamento. As certidões de nascimento dos filhos. Os Óbitos. Os diários de sua faina. A sua intimidade com a vida. O amor. As alegrias. As desilusões.

Homig, um metro e oitenta de homem, continuava: —Tu vês, Kleiderschrank? Aqui está o último Ziegel! E agora? Tu vais continuar. Eu sei. A casa vai ser vendida, meu velho. Aonde te levar, se este é o teu lugar? Eu? Sei lá para onde vou. Bem mais novo que tu, a vida me entortou todo. Com sessenta, não presto mais nem para guardar coisas. O homem foi feito para sentir. Hoje as coisas mudaram, velho. As coisas, como tu, têm seu valor. Tu não precisas de nada. Nunca precisaste. A cidade mudou. Os jardins também. Blumenau, o “Campo de Flores” do velho Ziegel, virou fumaça das fábricas. As casas da velha Colônia foram destruídas. Nova arquitetura. Novas visões do rio. Onde os chorões? Onde as barcaças? Onde as canções dos velhos canoeiros? O violino do barbudo Sperber? Tu te lembras de

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tudo. Eu sei. Tu aí e o barbudo chorando no violino. Todo mundo sentado à volta dele. As noites eram estreladas. Grandes. Os vizinhos sentados ali. As tortas de framboesa silvestre da bisavó Ethel. As meninas: cabelos dourados, imitando as estrelas. O pai, as doidices da vida sacudindo. Mas a gente era feliz e não sabia disso. Depois, o avô Ziegel já cego. Mas quando contava, as mãos tinham o calor de um chefe de orquestra, para dizer o que fora Blumenau no seu tempo de moço. Tempo de construir, de demarcar. De lutar com os nhambiquaras. Os olhos azuis brilhando ao estender o fio telegráíico. Ao cavar a terra. Ao colher as batatas. O aipim. Eu sei muito bem, velho, tu sabes de tudo. Assististe a tudo. Aí trancado, mas atento. Só não sei que fazer desta gaveta. A chave, tu bem sabes, foi no caixão da bisavó Ethel. Ela falou, é verdade, tu tens razão, e fez prometer que ninguém abrisse nunca, até o último Ziegel vivo. Mas, tu sabes, agora é o momento, velho. Aos cinqüenta, a gente já perdeu tudo. Até o valor das promessas. Os amigos começam a partir. O mundo vira do outro lado. O aves¬so é feio, Kleiderschrank. Eu sei que tu bem sabes disso. O avesso é a solidão, meu velho. O avesso é o conhecimento completo. Ninguém, aos cinqüenta, acredita. Espera. Procura. Então, a gente vai ao espelho e sabe. Sabe muito. O avesso das pessoas. O avesso das esperanças. O avesso da vida. Tu vês: e eu já com sessenta! Esperei muito, velho... Hoje, a gente vai decidir. Que mistério é esse, coisa calada, que tu guardas aí dentro? Só se me der uma coisa é que não abro isso hoje, velho. Eu sei que é difícil. Não quero te fazer mal. Te atingir. Te maltratar. Mas, que diabo, eu sou o último: O último dos Ziegel. Haverá gente nova, meu caro, e gente nova, tu sabes muito bem, é como a cidade nova. A cidade nova é outro caminho. O homem aprende a linguagem da máquina. A gente já está muito no cerne para mudar.

O Kleíderschrank era a única testemunha da angústia de Homig. Da solidão. Do desespero. Diante dele, a ca¬deira em que se sentara Homig, como sempre. O espaldar comprimindo o peito, os braços cruzados em cima do en-
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costo, como o mesmo antigo garoto do velho Ziegel. Nunca se sentara como todo mundo se senta. Era sempre ao contrário. Como os homens do bar do Zimmer quando jogavam damas e bebiam cerveja. Ele o sabia bem. O velho chegava em casa e reclamava. Ensinava-o a ser civilizado. Devia ser gente. Mas, e aquele sangue índio? De alemão é que ele nada tinha. A única coisa talvez de alemão era gostar da Bier. É verdade que disso ele gostava. E muito. O exterior herdara do velho. Os cabelos muito lisos e louros. Os olhos azuis e o comprimento do corpo. Era verdade que os olhos eram oblíquos como os dos nhambiquaras. Em linha ascendente e repuxados. Olhos compridos e desconfiados. Célere como um gato do mato. Entrava em casa sempre como um ladrão. Espiava, espiava e nem suas passadas se ouviam. A Avó Sacramento lhe dera a herança dos índios. Mas a avó era civilizada. Ela contava sempre sua infância. Quando chegaram os colonos alemães, o “Campo de Flores” do velho Ziegel fez a debandada dos índios. Era preciso começar a demarcar a Colônia. Estender o telégrafo. As flechas voavam no ar. Os índios não entendiam aquela invasão. Lutavam até a última flechada. Os meninos índios, sem mães, eram acolhidos por uma missão de freiras francesas, lá para as bandas de Nova Trento. A vó Sacramento fora criada por elas. Como era doce e terna a vóá índia! Temente a Deus. Humilde. Boa. Tinha mais ou menos um metro e meio de altura. O rosto era um pergaminho: rugas e rugas que Homig contava. Ria-se e se perdia na conta. O rosário dela cheio de contas gastas de tanto rezar. O riso dela, riso comprido e silencioso. E quando os cinco netos se alvoroçavam, ela só sabia dizer: “Louvado seja Deus.” Homig bem se lembrava de suas palavras e ia dizendo lo¬go às irmãs: “Vamos parar com isso, gente! Coitada da vó!” Havia então um silêncio religioso. Um medo estranho. Como se estivessem caindo línguas de fogo do céu. Ela nunca ralhava. Nunca dizia uma palavra sem a evocação de Deus.


A vó Maria do Sacramento era mansa como uma pluma. E sua humildade? Foi quando chegou tia Herna, da Alemanha. Ela a recebeu tão humilde, que tia Herna jamais esque-
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ceu do jeito simples com que a convidou para “ver aquele porquinho”. Tia Herna quando viu aquela montoeira de porcos nos chiqueiros, cada porco que era um bezerro, arregalou os olhos na face avermelhada e cheia, para lhe dizer, em bom alemão, que aquilo era até uma boa maneira de mentir. Vó Sacramento baixou os olhos:

— Pois é. Eu digo assim, só para não ofender a Nosso Senhor. Se eu dissesse: “Comadre Herna, vamos lá fora ver os porcos, Nosso Senhor podia me tomar por orgulhosa. Dizendo: “aquele porquinho”, Ele já estaria sabendo que o meu coração é lavado dessa coisa que Ele repudiou. Cá pra nós, comadre, a gente deve ter cuidado com a língua, para não ofender a Deus.”

A “comadre” Herna viera batizar a Hilda, a última filha da bisavó Ethel, que era um diabo em trajes de gente. Já estava com 16 anos. Pegava cavalo bravo no mato, tirava a roupa toda, montava nua em pêlo e cavalgava à vontade. O falatório da vizinhança. Eram só aqueles enredos dos preconceitos: “Hilda era vagabunda, endemoninhada.”

De tanto esperar que a madrinha viesse da Alemanha, diziam que ficara endiabrada. Bisavó Ethel não gostava de ver a filha pagã, mas, como fiel luterana, teimava em esperar a irmã, sua única parenta mais chegada, lá na terra do Kaiser.

Kleiderschrank se impregnara de todas as histórias daquela família. Assistia a tudo calado e mudo. Sempre havia mais um lugar dentro dele para a roupa dos que chegavam e para os segredos de todos.

Foi na Bauch, a gaveta do Kleiderschrank, que o batuta do Klaus Ziegel guardou as primeiras peças do enxoval, importadas da Alemanha, para casar com a vó Sacramento:
as ceroulas de flanela bávara, a jaqueta e o chapéu de tirolês com calças de veludo verde, a manta de lã e os lençóis de linho fino. Naquele tempo, Klaus era o rapagão mais bo-
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nito da Colônia, o mais versado na ciência das flores, dos animais e da fauna sulista. Era Agrimensor e formado Naturalista, com diploma alemão. Adorava os índios nhambiquaras e fez tudo para deles tornar-se amigo. Um dia levou uma flechada na perna que o deixou meio manco para toda a vida. Assim mesmo não desistia nunca. Quando passou o verão e as chuvas cederam, ele e os capitães da Colônia foram demarcar umas terras lá para o lado de Tijucas. Passava sempre por Nova Trento e via o Colégio das freiras. Ouvia as canções da meninada no pátio do colégio e como entendia o francês, deitava a cabeça na relva e escutava até o anoitecer as vozes garotas, quando se ouvia o sinal de silêncio. Um dia, não se conteve. Trepou no muro e pôde ver a meninada índia cantando e fazendo gestos ao comando das freiras. Quando tudo terminou, bateu no grande sino suspenso no portão da entrada. Pediu água. Madre Danielle encheu o copo de água fresca, pôs um guardanapo na bandeja, chamou a sua indiazinha predileta, Maria do Sacramento, que ela criara desde os primeiros meses de nascida e entregou-lhe a bandeja, levando, ela mesma, a moringa de barro na mão. Foram direto ao portão, onde o moço alemão esperava. Sacramento tinha doze anos. Fez o clássico cumprimento em curvatura e estendeu a bandeja ao moço bonito de olhos azuis. O viajante bebeu a água sofregamente. Perguntou tudo sobre a indiazinha e prometeu voltar na outra semana, para trazer, em retribuição à água tão boa e fresca, uns espécimes de flores que tinha em sua Colônia. Irmã Danielle agradeceu em alemão, só para ser simpática. Na semana seguinte, Klaus batia o sino de novo. Dessa vez pedia para entrar, pois tinha uma conversa comprida com a Irmã Danielle.


A freira arregalou muito os olhos quando o rapaz queria mas era casar com Sacramento. Explicou que ela era ainda muito criança, que precisava muito de cuidados e de educação. Ponderou, ponderou, mas Herr Ziegel não compreendia outra coisa, senão o casamento. Ele a amara mui¬to, antes, sem mesmo vê-la, quando, entre as vozes das outras, ela também estava nas bonitas canções da França Me-
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ridional. Afinal, o Bispo foi ouvido, o Administrador da Colônia e nada mais foi preciso, porque os papéis de Herr Ziegel estavam todos em ordem. O padre August casou os dois e o bom cavalo baio os levou através do silêncio da mata até a Colônia. Uma noite inteira cavalgando. Sacramento agarrada à sua bruxa de pano que Irmã Danielle costurara para ela. Era como defender seu último auxílio. Calada como a noite entre as árvores. Herr Ziegel, de vez em quando, perguntava. A resposta era sempre a linguagem irreal do silêncio. Ele voltava a falar:

— Você gosta um pouco de mim?

Sacramento agora dormia. A bruxa de pano em seus braços pequenos. Sua cabeça caída no braço forte do moço alemão. Quem poderá dizer dos sonhos de Sacramento?




Dois dias de viagem. A hospedaria no meio da picada entre a festa das aroeiras e das silveiras em flor. Tudo era um mundo de coisas estranhas para uma guria de doze anos. A casa tinha telhado triangular. Era de madeira. E muitas camas se espalhavam pela comprida sala do andar de cima. Herr Ziegel deitou a sua menina perto da janela que dava para o sul. Estendeu sua manta de cavalgar e encompridou-se ali do lado. Como um cão vigilante. Na manhã, tudo era a complicada fisionomia das pessoas. O homem gordo e estranho falando uma língua estranha. A mulher de avental bordado e cabelos presos num coque no al¬to da cabeça. Os hóspedes se entreolhando misteriosamente. E todos os olhares voltados para Sacramento. Os pigarreados e os sorrisos maliciosos. Perguntas a uns e outros que ela jamais podia entender.

O alemão gordo da hospedaria riu alto um riso sarcástico:

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— Herr, vai levando a índia, hein?

Ziegel fechou a cara e respondeu alto:

— Cuidado com a língua, porco. Ela é minha esposa.

Enquanto subiam no cavalo, Sacramento recebia as risadas do gorducho como flechas em seu coração. Que seria, afinal, casamento? Esposa? Ir por um mundo de picadas de mato com aquele estranho, em cima de um cavalo? Era motivo de tanto riso? Um riso maldoso que se podia sentir vergonha?

Ela bem que aprendera o que era vergonha e respeito com Madre Danielle. Mas sobre aquele negócio de casamento nunca lhe tinham explicado nada. Seria mudar de convento? Mudar de lugar? De dono? De religião?

Os olhos de Sacramento se alongavam mais, à medida que se abriam para buscar a realidade. Seu cavaleiro passava a mão em seu rosto, sorria, sorria:

— Frau Sacrramente, como vai esse rosto?

Ela falava pouco, mas seus olhos diziam coisas que ele não podia entender. Por onde aquele homem a levaria? Em sua cabeça o convento. As freiras. A reza da manhã e da noite. Uma vida resumida. Uma coisa cá dentro. Um embucho na alma. Um peso. Uma falta que não sabia aceitar. Mas aceitava.

A chegada no “Campo de Flores”, tão prometido à pequena Sacramento pelo marido, ao qual ainda não se acostumara, fora um terremoto. Os velhos Ziegel. Seu Ervin Ziegel e Frau Ziegel quase endoidaram. Frau Ziegel, então, nem se fala. A “Mama” não compreendia o gesto do filho. Era uma alemã. De corpo e alma alemã. Só compreendia noras alemãs. Só falava o alemão e jamais falaria outra língua. Seu nacionalismo chegava ao absoluto. Houve concentração

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da Colônia. O Administrador era um homem de visão. Ama¬va Blumenau, seu “Campo de Flores”, como sua pátria de nascimento. “E então? As coisas jamais poderiam ser assim tão drásticas. Se o jovem Ziegel achara a sua felicidade naquela menina índia que só falava francês e muito pouco o português, fora imposição da vida Nem sempre se escolhe. A vida manda muito na gente Que foi que empurrou o jovem Ziegel lá para as bandas de Nova Trento? A gente pode escolher alguma coisa. Fazer força e trabalhar por algum ideal. Mas se a vida não der licença, nada, ou pouco adianta.”


Os Ziegel não compreendiam e apesar de crer no Administrador da Colônia até a raiz dos cabelos, naquilo, era certo, ele estava errado. Frau Ziegel era a Mutter e estava acabado. Herr Ziegel, para tudo, consultava a Mutter. Por que o filho tinha saído assim tão independente que fizera tudo sem que eles soubessem? E numa semana apenas? Com vinte e dois anos? E Frau Ziegel contava pelos dedos. Uma, duas, três. Quatro e cinco vezes, bem na cara do filho. Vinte e dois anos! Era idade para alguém se decidir por si mesmo? Era idade para saber o que era direito? Era idade para escolher? Para resolver?


Klaus Ziegel, o moço marido, calado. Ouvia tudo. Aprendera a ser obediente àquela mãe que nunca vira cho¬rar. Uma mulher forte. Dominante. Que sabia tudo. Que decidia tudo.

Sacramento era uma índia espantada. Para que abrir os olhos diante do impossível? Pois se não compreendia o tumulto generalizado... Sabia que se falava muito naquela casa. Na hora da mesa, todos se calavam. Faziam o sinal da cruz corniam em silêncio. Ela fazia o seu. Pensava muito em madre Danielie. Ela lhe dera tantos conselhos bons para servir a Deus. Para servir ao próximo. Para ser humilde e boa. Levantou de repente os olhos e viu, bem em sua frente, o moço Klaus. Compreendeu que ele sofria. Ele pre-
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cisava dela. Mas o que seria ser marido e mulher, de que ele lhe falara durante toda a viagem para Blumenau? Casamento seria aquilo que ele dissera no seu francês arrepiado? Viver em dois como se fossem um só? Como seria ser um em dois? E aquele falatório numa língua complicada e desconhecida? No seu silêncio de túmulo, Sacramento só existia ajudando a fazer o pão, as tortas, as conservas. A Mutter mandando. Exigindo. Só em gestos. Sem nunca a chamar pelo nome. Dormia no quarto dos fundos. Só via Klaus à hora do almoço ou do jantar. Muitas vezes ele viajava. Mas quando chegava, ia à cozinha e lhe passava a mão pela cabeça. Beijava sua trança. Os gestos sempre lhe falando de algo bom e bonito. Isso quando a Mutter não estava lá.

Já fazia uns meses da grande viagem. Pensava em madre Danielle. Vontade de voltar. À noite, só Claude, em sua estrutura inanimada, lhe dava amor. A boneca podia levar seu pensamento longe. Era o seu único ser não abstrato. A ela se agarrava. Dormia.

Naquela noite era festa na Colônia. A caça fora farta. A grande fogueira trazia o clarão até a fresta, onde a cortina fina e fluida se abria levemente.

De repente, de cansaço, dormira. Um hálito de licor de framboesa lhe roçava a face, um leve perpassar em seu rosto, como a suave brisa de abril. Entre sonho e realidade, esfregou os olhos. Então viu Klaus. Sentado no semicírculo que se fizera com a curva de sua figura franzina, deitada de lado, como no ventre materno.

Ele se curvou muito mais ainda sobre seus olhos. Em silêncio, primeiro. Depois, sua voz:

— Sacrra, Sacrrinhe... e lá vinha em murmúrio, o francês bem crucificado do moço alemão. Falava-lhe coisas e coisas bonitas. Ela sabia que eram bonitas. Qualquer coi-
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sa instintiva. Qualquer sentido forte com nitidez completa. Klaus falava, falava doucement:

— Você já ganhou o “rio vermelho” que visita as mulheres?

Rio Vermelho? Que visita as mulheres? Positivamente era essa a mais estranha pergunta. Será que ele falava a língua das parábolas? Como Cristo? Como madre Danielle? Como nas escrituras? Ele seria divino também?

Não. Ela não ganhara ainda nenhum “rio vermelho”. Devia ser bonito ganhar um rio. Ainda mais, vermelho, coisa que nunca tinha visto e de que nunca ouvira falar.

Klaus sorria. Toda a ingenuidade do mundo estava em Sacramento. Todo o desconhecido do mundo. Toda a hu¬mildade do mundo também. E ele começou a contar-lhe. Devagar. Como quem prepara a terra para a semente. Como quem fiscaliza cada palavra. Cada gesto. Cuidadoso sentido de não atordoar. De não pisar. E ela ficou sabendo como uma menina vira moça e depois, então mulher. Ele esperaria, sim. Não se espantasse com o “rio vermelho”. Era coisa de Deus também. O amor era coisa de Deus. A união de doís, num corpo só, foi Deus também quem ensinou aos homens, como ensinou aos homens a fidelidade e o perdão. Um dia ela compreenderia a Mutter. Mutter também seria razoável. Ele a amava muito. Teriam muitos filhos. Agora era como preparar a terra, plantar as sementes. Isso era difícil. Cansava muito. A espera era dura e longa. Mas e depois? Tudo crescendo em verde como a esperança. Depois as flores. Logo os frutos.

Era amanhecente lá fora. A fresta feita pelas duas faixas da cortina do quarto diziam isso. Já claro. Um azul meio esbranquiçado tomando conta do mundo. Os galos cantando. Os passarinhos. O quarto muito vazio. Só a cama. Um pequeno armário de canela sem verniz, em sua cor natural. O baú de lata com flores azuis que Sacramento

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trouxera do convento. Um beijo na sua trança, depois de fiscalizar o pequeno mundo da “prisioneira”. Klaus se levanta e faz com a mão o sinal da esperança. Ninguém podia vê-lo por ali. “Mama” e “Papa” já estariam chegando da festa. Tudo caiu num profundo silêncio. Sacramento se levanta para tirar leite das vacas, mas seu pensamento era um espantalho de perplexidade.

Lá fora o dia cantando. O arvoredo em volta cantando. O rio e seus pequenos barcos.. Os homens frágeis soltando no ar sua primeira canção no amanhecer:


“Lá no mar tem vento
Deixa o vento e sai...
No cambá da vela,
Moreninha, oi, ai. .


Eram as barcas na correnteza do rio, para a sofreguidão do mar. Os barqueiros de Camboriú que iam e vinham levando coisas trazidas pelos navios estrangeiros. Eram os brasileiros mestiços de portugueses e índios. Os trimestiços de índios-africanos-açorianos como os chamavam os colonos vindos da Alemanha.

Sacramento soltou os cabelos compridos. Lavou seu rosto no rio. Fez mais limpas as jarras do leite e o grande balde branco de ágata. Caminhou pasto afora, pelo atalho comprido. Chegou aos currais. Falou com os bezerros. Com as árvores. Com o vento. Levou seus pensamentos tumultuados para soltar até onde o céu acabava no infinito. Suspirou fundo. Klaus era, agora, um mundo que lhe fazia muita falta. Sentou-se na relva. Trançou o cabelo. Acariciou a trança como ele fazia. A verdade é que o tinha cada dia mais perto.

Lá vinha a Mutter. Nem uma palavra. Tomou-lhe o balde das mãos. Terminou o trabalho começado. Apontou firme o caminho. Em gestos, ela compreendeu que era hora de cuidar da roupa de molho na tina grande.

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Estendeu no comprido varal as camisas de Klaus, as ceroulas do velho Ziegel, as roupas da Mutter e seus aventais de trabalho. Depois de bem lavada, enchera a tina de água até em cima. Era sábado, dia do banho geral da família. A primeira a se banhar era a Mutter. Depois o marido. Em seguida, o moço Ziegel, depois das meninas. Sacramento se lavava no rio.

A tina era uma grande metade de barril enorme, que viera com eles da Alemanha. Uma pequena piscina redonda de tanuaria.

A faina era grande. O dia era enorme. Para Sacramento, só uma coisa existia agora além de Claude: Klaus. Ele invadia a todo instante o seu pensamento. Espiava-a todo momento, depois do trabalho. Procurava a ausência dos outros, só para aquela leve carícia que era tão pouco, mas aplacava sua febre de amor.




Os velhos Ziegel trataram tudo direitinho. Fritz, o alemão alto e vermelho iria, com eles. Klaus não precisava vir. Joana, a alemã cozinheira ficaria com a índia, com a séria responsabilidade de não deixá-la aproximar-se do filho Klaus. Botasse Hilda no bordado do tapete. Tomasse conta dela. E Joana sabia que seguiria à risca a determinação. Nem um centímetro, ao menos. Era uma semana de festa para a família. Os bons doces de mel, já preparados um mês antes, Sacramento os colocava nas latas. Ela mesma aprendera a enfeitá-los com os confeitos vindos da Alemanha, pelo último navio que trouxera muitos colonos novos. Ela própria colhera as framboesas silvestres, para as tortas. Ficava com as mãos todas cortadas de descascar os pêssegos, os abacaxis e as goiabas para a conserva. Os vidros grandes. Todos se coloriam na prateleira da sala de jantar e a festejavam em colorido. A fornada de pão perfumado. Viu, de repente, o moço Ziegel entrar como o vento sul. O

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moço Ziegel sorria. Tirou duas bonitas fatias de um dos pães dourados, ainda mornos, cobertos por uma rendada toalha branca, passou banha de porco apurada na manhã anterior, e revestiu a camada de banha de uma espessa brancura, com açúcar. Juntou as duas metades em sanduí¬che, piscou os olhos para a sua “Sacrramente” e comeu sofregamente a delícia. Era como se fosse o menino de outrora, quando a Mutter lhe preparava a merenda, para a pe¬quena escola primária de Kempten. Estava alegre como um menino. Espiou de um lado e de outro. Viu que não havia mais ninguém na cozinha. Beijou a sua pequena índia na face. Na trança negra, no braço nu. Sacramento não tinha mais aquele jeito espantado e medroso. Colhia seu beijo. Sorria. Dizia-lhe muitas coisas com os pequenos e vivos olhos brilhantes.

Klaus já se ia ao chamado da Mutter, quando Sacramento lhe fez um sinal para falar-lhe: Ele curvou-se bem, até seu ouvido colar-se a seus seios:

— Diga já querida.

A voz não saía fácil. A Mutter chamando forte:

— Aqui, Klaus. Aqui no quarto. Quanto tempo você já está aí?

Sacramento continuou como surda e muda. Mas ainda pôde dizer quando o marido se afastava, numa rápida expulsão:

— O rio. “O rio vermelho”. Pela primeira vez esta semana! E agora?

— Agora, agora, querida, você já é uma moça pronta. E eu estou muito feliz hoje. (Mais um beijo na trança, e foi correndo atender a “Mama”).


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