terça-feira, 30 de março de 2010

MORTE E VIDA SEVERINA - João Cabral de Melo Neto

MORTE E VIDA SEVERINA - JOÃO CABRAL DE MELO NETO

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI



— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.


Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.





ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO
UM DEFUNTO NUMA REDE,
AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS!
IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU
QUEM MATEI NÃO!"




— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.

— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.

— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?

— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.

— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?

— Onde a caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.

— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?

— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?

— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mas garantido é de bala,
mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.

— E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?

— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.

— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas
que podia ele plantar
na pedra avara?

— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.

— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?

— Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.

— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?

— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.

— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?

— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.

— E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente do chumbo
que tem guardada?

— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.

— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.

— Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.

— E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.

— Vou eu que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.

— Mais sorte tem o defunto
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.

— Toritama não cai longe,
irmãos das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.

— Partamos enquanto é noite
irmãos das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.



O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR POR SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO





—— Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas
sei que há simples arruados,
sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha
entre uma conta e outra conta,
entre uma e outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha.
Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho que saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem vivas
ouço somente à distância
o que parece cantoria.
Será novena de santo,
será algum mês-de-Maria
quem sabe até se uma festa
ou uma dança não seria?




NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA,
VAI PARODIANDO A PALAVRAS DOS CANTADORES





—— Finado Severino,
quando passares em Jordão
e o demônios te atalharem
perguntando o que é que levas..

—— Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.

—— Finado Severino,
etc...

—— Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação.

—— Finado Severino,
etc...

—— Dize que coisas de não,
ocas, leves:
como o caixão, que ainda deves.

—— Uma excelência
dizendo que a hora é hora.

—— Ajunta os carregadores
que o corpo quer ir embora.

—— Duas excelências...

—— ... dizendo é a hora da plantação.

—— Ajunta os carreadores...

—— ... que a terra vai colher a mão.





CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA
INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES
E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA.





—— Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas por que
parar aqui eu não podia
e como Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos até que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando
agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços
é toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos,
pelo sol com suas línguas?
será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo
sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo há para que decida
primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva.
Vejo uma mulher na janela,
ali, que se não é rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho
poderá me dar notícia.



DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ





—— Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?

—— Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?

—— Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.

—— Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?

—— Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.

—— Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar
diga-me ainda, compadre,
que mais fazias por lá?

—— Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.

—— Esses roçados o banco
já não quer financiar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?

—— Melhor do que eu ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.

—— Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá
diga-me ainda, compadre
que mais fazia por lá?

—— Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavras
pela seca faca solar.

—— Isto aqui não é Vitória

nem é Glória do Goitá
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?

—— Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.

—— Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?

—— Em qualquer das cinco tachas
de um bangüê sei cozinhar
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.

—— Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?

—— Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.

—— Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.

—— Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.

—— Essa vida por aqui
é coisa familiar
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?

—— Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.

—— Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.

—— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?

—— Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:

como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.

—— E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?

—— é, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.

—— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?

—— De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.

—— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?

—— Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar
não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.





O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA
MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ,
EM INTERROMPER A VIAGEM.





—— Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quando mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm água vitalícia.
Cacimbas por todo lado
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.

Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina
somente ali à distância
aquele bueiro de usina
somente naquela várzea
um bangüê velho em ruína.

Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.

Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina
e aquele cemitério ali,
branco de verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.





ASSISTE AO ENTERRO DE UM
TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE
DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O
LEVARAM AO CEMITÉRIO




—— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

—— é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe

neste latifúndio.

—— Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

—— é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

—— é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.

—— é uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.



—— Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.

—— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.

—— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.

—— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.

—— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.

—— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.

—— Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.

—— Será de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.

—— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.

—— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.

—— Tua roupa melhor

será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.

—— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.



—— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).

—— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)

—— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).

—— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).

—— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)

—— Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).


—— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.

—— Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.

—— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.

—— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.

—— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.

—— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.



—— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.

—— Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.

—— Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.

—— Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.



—— Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.

—— Na mão direita somente
o rosário, seca semente.

—— Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha,

—— Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.


—— Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.

—— De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito à viração.

—— Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.

—— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.

—— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.

—— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com que se dorme.




O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS
PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE


—— Nunca esperei muita coisa,
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça
o que apenas busquei
foi defender minha vida
de tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.

Está apenas em que a terra
é por aqui mais macia
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre com
a mesma chama mortiça.

Agora é que compreendo
por que em paragens tão ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vivi a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida,
com medo de se deter,
grande que seja a fadiga.
Sim, o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
o fim do rosário de nomes
que a linha do rio enfia
é chegar logo ao Recife,
derradeira ave-maria
do rosário, derradeira
invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
e esta minha viagem se fina.





CHEGANDO AO RECIFE O
RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR
AO PÉ DE UM MURO ALTO E
CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO,
A CONVERSA DE DOIS COVEIROS


—— O dia hoje está difícil
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores,
mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos).
—— pois eu me daria por contente
se me mandassem para cá.

Se trabalhasses no de Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.

—— é que o colega ainda não viu
o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).
As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo,
e ainda mais cenografia.

Mas este setor de cá
é como a estação dos trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de alguém.

—— Mas se teu setor é comparado
à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela
onde não para o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem.

—— Então por que não pedes,
já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro
se achas mais leve o serviço?
Não creio que te mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos bangunlezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros)
bairro também dos industriais,
dos membros das
associações patronais
e dos que foram mais horizontais

nas profissões liberais.
Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de saída.

—— Só pedi que me mandasse
para as urbanizações discretas,
com seus quarteirões apertados,
com suas cômodas de pedra.

—— Esse é o bairro dos funcionários,
inclusive extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e diaristas).
Para lá vão os jornalistas,
os escritores, os artistas
ali vão também os bancários,
as altas patentes dos comerciários,
os lojistas, os boticários,
os localizados aeroviários
e os de profissões liberais
que não se libertaram jamais.

—— Também um bairro dessa gente
temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho,
cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na lousa
quase sempre em letras pretas.
Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas.

—— Gorjetas aqui, também,
só dá mesmo a gente rica,
em cujo bairro não se pode
trabalhar em mangas de camisa
onde se exige quepe
e farda engomada e limpa.

—— Mas não foi pelas gorjetas, não,
que vim pedir remoção:
é porque tem menos trabalho
que quero vir para Santo Amaro
aqui ao menos há mais gente
para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia.

—— E que disse o Administrador,
se é que te deu ouvido?

—— Que quando apareça a ocasião
atenderá meu pedido.

—— E do senhor Administrador
isso foi tudo que arrancaste?

—— No de Casa Amarela me deixou
mas me mudou de arrabalde.

—— E onde vais trabalhar agora,
qual o subúrbio que te cabe?

—— Passo para o dos industriários,
que também é o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos comerciários.

—— Passas para o dos operário,
deixas o dos pobres vários
melhor: não são tão contagiosos
e são muito menos numerosos.

—— é, deixo o subúrbio dos indigentes
onde se enterra toda essa gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.

—— é a gente sem instituto,
gente de braços devolutos
são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto.

—— é a gente dos enterros gratuitos
e dos defuntos ininterruptos.

—— é a gente retirante
que vem do Sertão de longe.

—— Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.

—— E que então, ao chegar,
não tem mais o que esperar.

—— Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.

—— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.

—— E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar.

—— Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca.

—— Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.

—— O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.

—— E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.

—— Mas o que se vê não é isso:

é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia
morre gente que nem vivia.

—— E esse povo de lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando
cemitério esperando.

—— Não é viagem o que fazem
vindo por essas caatingas, vargens
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.




O RETIRANTE APROXIMA-SE DE
UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE




—— Nunca esperei muita coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.

E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).





APROXIMA-SE DO RETIRANTE O
MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS
QUE EXISTEM ENTRE O CAIS
E A ÁGUA DO RIO




—— Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?

—— Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.

—— Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega o abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.

—— Severino, retirante
pois não sei o que lhe conte
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.

—— Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?

—— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.

—— Seu José, mestre carpina,
e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?

—— Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alarga
e devasta a terra inteira.

—— Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?

—— Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.

—— Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?

—— Seu José, mestre carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?

—— Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.

—— Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?

—— Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso tais partidas,
mas o que compro a retalho
é, de qualquer forma, vida.

—— Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?




UMA MULHER, DA PORTA DE
ONDE SAIU O HOMEM,
ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ



—— Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito
e estais aí conversando
pois sabeis que ele é nascido.





APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO
HOMEM VIZINHOS,
AMIGOS, DUAS CIGANAS, ETC





—— Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.

—— Foi por ele que a maré
fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.

—— E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante.

—— E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.



—— Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.

—— Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.

—— E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.

—— E este rio de água, cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de estrelas.





COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS
TRAZENDO PRESENTES PARA
O RECÉM-NASCIDO




—— Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.

—— Minha pobreza tal é
que coisa alguma posso ofertar:
somente o leite que tenho
para meu filho amamentar
aqui todos são irmãos,
de leite, de lama, de ar.

—— Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:
trago este papel de jornal
para lhe servir de cobertor
cobrindo-se assim de letras
vai um dia ser doutor.

—— Minha pobreza tal é
que não tenho presente caro:
como não posso trazer
um olho d'água de Lagoa do Cerro,
trago aqui água de Olinda,
água da bica do Rosário.



—— Minha pobreza tal é
que grande coisa não trago:
trago este canário da terra
que canta sorrindo e de estalo.

—— Minha pobreza tal é
que minha oferta não é rica:
trago daquela bolacha d'água
que só em Paudalho se fabrica.

—— Minha pobreza tal é
que melhor presente não tem:
dou este boneco de barro
de Severino de Tracunhaém.

—— Minha pobreza tal é
que pouco tenho o que dar:
dou da pitu que o pintor Monteiro
fabricava em Gravatá.



—— Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete de cana.

—— Eis ostras chegadas agora,
apanhadas no cais da Aurora.

—— Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.

—— Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.



—— Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.

—— Siris apanhados no lamaçal
que já no avesso da rua Imperial.

—— Mangas compradas nos quintais ricos
do Espinheiro e dos Aflitos.

—— Goiamuns dados pela gente pobre
da Avenida Sul e da Avenida Norte.





FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM
APARECIDO COM OS VIZINHOS





—— Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
o anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.



—— Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo
é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida.
Minha amiga se esqueceu
de dizer todas as linhas
não pensem que a vida dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.





FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE
VIERAM COM PRESENTES, ETC





—— De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.

—— De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.

—— Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.

—— Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas
nas suas já se adivinha.



—— De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.

—— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.

—— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.

—— De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.



—— é tão belo como a soca
que o canavial multiplica.

—— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.

—— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.

—— é tão belo como as ondas
em sua adição infinita.



—— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.

—— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.

—— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.

—— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.



—— E belo porque o novo
todo o velho contagia.

—— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.

—— Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.

—— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.





O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE
ESTEVE DE FORA,
SEM TOMAR PARTE DE NADA





—— Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.



E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida
como a de há pouco, franzina
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

(http://www.culturabrasil.pro.br/joaocabraldemelonetoo.htm)

COMÉDIAS PARA SE LER NA ESCOLA - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

COMÉDIAS PARA SE LER NA ESCOLA
Luís Fernando Veríssimo
Sobre a digitalização desta obra:
baseado no site http://www.tutomania.com.br/livro/comedias-para-se-ler-na-escola-lluis-fernando-verissimo

BOM DE OUVIDO
por Ana Maria Machado

Volta e meia a gente encontra alguém que foi alfabetizado, mas não sabe ler.
Quer dizer, até domina a técnica de juntar as sílabas e é capaz de distinguir
no vidro dianteiro o itinerário de um ônibus. Mas passa longe de livro,
revista, material impresso em geral. Gente que diz que não curte ler.
Esquisito mesmo. Sei lá, nesses casos, sempre acho que é como se a pessoa
estivesse dizendo que não curte namorar. Talvez nunca tenha tido a chance
de descobrir como é gostoso. Nem nunca tenha parado para pensar que, se
teve alguma experiência desastrosa em um namoro (ou em uma leitura), isso
não quer dizer que todas vão ser assim. É só trocar de namorado ou
namorada. Ou de livro. De repente, pode descobrir delícias que nem
imaginava, gostosuras fantásticas, prazeres incríveis. Ninguém devia ser
obrigado a namorar quem não quer. Ou ler o que não tem vontade. E todo
mundo devia ter a oportunidade de experimentar um bocado nessa área, até
descobrir qual é a sua.
Durante 18 anos, eu tive uma livraria infantil. De vez em quando, chegavam
uns pais ou avós com a mesma queixa: "O Joãozinho não gosta de ler, o que
é que eu faço?" Como eu acho que o ser humano é curioso por natureza e
qualquer pessoa alfabetizada fica doida pra saber o segredo que tem dentro
de um livro (desde que ninguém esteja tentando lhe impingir essa leitura
feito remédio amargo pela goela abaixo), não acredito mesmo nessa história
de criança não
gostar de ler. Então, o que eu dizia naqueles casos não variava muito.
A primeira coisa era algo como "pára de encher o saco do Joãozinho com
essa história de que ele tem que ler". Geralmente, em termos mais delicados:
"Por que você não experimenta aliviar a pressão em cima dele, e passar uns
seis meses sem dar conselhos de leitura?"
O passo seguinte era uma sugestão: "Experimente deixar um livro como este
ao alcance do Joãozinho, num lugar onde ele possa ler escondido, sem
parecer que está fazendo a sua vontade. No banheiro, por exemplo." E o que
eu chamava de um livro como este, já na minha mão estendida em oferta,
podia ser um exemplar de O Menino Maluquinho, do Ziraldo, ou do
Marcelo, Marmelo, Martelo, da Ruth Rocha, ou de O Gênio do Crime, do
João Carlos Marinho. Havia vários outros títulos que também serviam. Mas o
fato é que, em 18 anos de experiência, NUNCA, nem uma única vez,
apareceu depois um pai reclamando que aquela sugestão não tinha dado
certo. Pelo contrário, incontáveis vezes o encontro seguinte já incluía um
Joãozinho entusiasmado, comentando o livro lido e disposto a fazer novas
descobertas. Para adolescentes e jovens, a coisa é um pouco mais
complicada. Não porque não haja livro bom assim como os que citei. Pelo
contrário, tem de montão. Eu seria capaz de encher páginas e páginas só
dando sugestões e comentando cada uma delas. A quantidade chega até a
atrapalhar a escolha, não é esse o problema. Mas aí já entram em cena muitas
outras variáveis.
O fôlego de leitura do sujeito, por exemplo. Igualzinho ao que acontece nos
esportes. Como quem sabe que não vai agüentar jogar noventa minutos, e
então nem bate uma bolinha, dizendo que acha futebol um jogo idiota. Há
quem desanime só de ver o número de paginas do livro, ou o tamanho da
letra, ou o fato de não ter ilustração. Nesse caso, o cara acha que vai ficar de
língua de fora e pagar o maior mico. Não percebe que não está competindo
com ninguém.
Também não tem ninguém na arquibancada olhando sua performance. Dá
para levar o tempo que quiser para chegar ao fim do livro. Ler uma página
por dia, por exemplo, se não quiser ir mais depressa. Num livro como este
aqui, dá pra fazer isso - as histórias são curtinhas.
Para outros candidatos a leitor, não é uma questão de fôlego, mas de medo de
não ter musculatura para ler. De só dar chute chocho e a bola não ir longe.
De não agüentar a força do que está escrito, não entender umas palavras, não
perceber o que o autor quer dizer e ficar se achando um burro. Se nunca usar,
o músculo pode acabar
tão atrofiado que o cara não consegue nem mastigar, fica feito um bebê, só
come papinha, sopa e sorvete. Incapaz de traçar um churrasco - para não falar
em ir ao supermercado trazer a carne, ou plantar a própria horta. Dá um
trabalho... Quando vejo essa atitude, sempre me lembro daquela frase: "Acha
que educação custa caro?
Experimente só a ignorância..." Mas, de qualquer modo, dá também para ser
solidário com quem ainda não teve chance de desenvolver sua musculatura
leitora. Tudo bem, vamos devagar. Lendo textos curtos, fáceis, divertidos,
variados, numa linguagem clara e parecida com a que a gente fala todo dia (e
toda noite, não há limites).
É só folhear este livro. Pode ser que alguma história atraia sua atenção e
mostre que, mesmo que uma ou outra palavra lhe escape, ninguém está
falando complicado.
Outra questão difícil na escolha de uma leitura de jovens e adolescentes, em
minha opinião, é que eles já são praticamente adultos. Ainda mais hoje em
dia, e no nosso país. Não têm que ficar lendo histórias de uma turminha de
garotos que só se trata por apelidinhos idiotas e inventa uma máquina do
tempo ou apura um crime, ou enfrenta o terror de múmias e mortos-vivos a
serviço de um cientista maluco, ou vive aventuras nos Mares do Sul, no Vale
dos Dinossauros, na Galáxia Superior ou no Reino do Escambau. É até uma
falta de respeito com a inteligência e a capacidade dos jovens. Eles podem
rir, brincar, gostar de ter amigos e de se divertir, mas também gostam muito
de pensar e de criticar um bocado das heranças malucas que esse chamado
mundo dos adultos está deixando para eles. E muitos dos livros que esses
adultos (que muitas vezes não lêem) querem que eles leiam ficam batendo
nessa tecla da “bobajada divertida”.
Coisas que até tinham algum sentido em gerações anteriores, mas hoje
apanham de goleada de qualquer videogame - porque são um tipo de
diversão que não precisa de palavras.
E quando os livros que os adultos querem que os jovens leiam não são esses,
pior ainda: lá vem aqueles autores do século XIX... e já estamos no XXI!
Podem ser ótimos, importantes e tudo o mais - ninguém está negando isso.
Mas não são o tipo de leitura ideal para aquele primeiro namoro/leitura cheio
de delícias e gostosuras, quando o leitor ainda nem tem vinte anos.
E tem mais. Nessa idade, todo mundo gosta de procurar sua tribo. Há quem
goste de pagode, quem se amarre em música sertaneja, quem só queira saber
de rock. A turma que madruga e batalha para conciliar estudo e trabalho, o
pessoal que discute política e faz manifestação, a moçada que não está nem
aí. Se eles não se vestem igual, não freqüentam os mesmos lugares, não se
deslocam nos mesmos transportes, não curtem o mesmo tipo de música, não
falam a mesma gíria, como é que de repente a gente vai encontrar um livro
assim como O Menino Maluquinho para jovens, capaz de atingir a todos, tão
diferentes?
A sorte é que o Brasil é incrível e produz essas coisas. A nossa cultura tem
sido capaz de revelar de vez em quando uns artistas que são assim, portavozes
de todos. Tipo Chico Buarque na música. Ou um filme como Central
do Brasil, no cinema. E muitos outros.
Mais do que isso: tem sido uma permanente preocupação da arte brasileira,
desde o modernismo de 1922, procurar ao mesmo tempo inventar uma
linguagem nova e se expressar de uma maneira reconhecida por todos como
nossa, brasileira. No caso da literatura, todo escritor que surgiu desde essa
época teve que em algum momento decidir que tipo de língua ia usar para
ajudar a criar a linguagem escrita brasileira. Um português que não seja
artificial, enquadrado e certinho como impingiam os gramáticos lusitanos,
mas que também não se transforme no vale-tudo dos locutores esportivos,
tão pretensioso, ignorante e cheio de erros, tão consagrador das manias
pessoais que pode acabar levando a uma situação em que daí a algum tempo
ninguém mais se entende. Enfim, os escritores brasileiros do século XX
tiveram que enfrentar o desafio de estabelecer o português do Brasil, fiel ao
espírito do idioma que herdamos, mas atento ao que se diz de verdade pelo
país afora, em casa ou na rua. Um português correto, mas brasileiro. Para ser
um bons escritor, foi sendo necessário ter bom ouvido, ser meio músico. E,
além disso, captar nossas pausas para rir. Coisa superimportante para todos
nós.
Tem humorista que acha que é escritor. Nem sempre dá certo, às vezes fica
até meio patético, sem graça e sem garra, dá pena. Mas talvez ainda seja pior
o caso dos escritores metidos a engraçados. Dão mais pena ainda,
constrangem o leitor. Ainda bem que no Brasil esses casos até que são raros.
Temos é uma belíssima tradição de excelentes humoristas-escritores. Gente
que tem um texto límpido, ágil, maravilhosamente agudo e inteligente.
Autores que lêem muito, ouvem muita música, vêem muita imagem, se
metem no palco, transitam de uma arte para outra. São artistas que sabem
plasmar a linguagem para que ela lhes obedeça, autores que conhecem
profundamente o idioma, que são capazes de relacionar fatos quotidianos
com episódios históricos, carregálos de alusões culturais, revirar sua lógica
pelo avesso. Com isso, mostram seu ridículo, expõem seu absurdo... e
arrancam gargalhadas ou sorrisos à vontade. Nomes como os de Millôr
Fernandes, Ivan Lessa, Stanislaw Ponte Preta, Aldir Blanc. Nessa
companhia, Luis Fernando Verissimo está absolutamente à vontade. É um
dos grandes, numa área que, com toda certeza, e um dos pontos altos e
originais da nossa literatura.
A praia do Verissimo é o quotidiano principalmente na intimidade As
conversas entre quatro paredes, as lembranças solitárias de infâncias e
adolescências constantemente passadas a limpo, os desígnios de Deus (em
geral, mascarados sob a forma clássica das velhas anedotas sobre um grupo
de pessoas que morre e se apresenta diante de São Pedro). Mas o tema não é
o mais importante. Sobre qualquer assunto e a qualquer pretexto, o autor
revela suas obsessões, fala das mesmas coisas, preocupa-se com o social e o
ético, despreza solenemente o econômico... e encontra sempre uma maneira
nova de fazer isso, como se nunca o tivesse feito antes. As situações podem
ser quotidianas, mas os ângulos geralmente são insólitos e inesperados. Ou
então, reforçam o já esperado, mas com tão exatas pitadas de exagero que a
caricatura até parece um retrato realista pelo avesso, em que o lado cômico é
revelado em sua verdadeira grandeza e o sentido profundo aparece com
nitidez.
Para conseguir isso, Luis Fernando Verissimo conta com seu magistral
domínio da linguagem e do ritmo da narração. Tem uma admirável economia
no uso das palavras tudo é enxuto, nada sobra. No país do barroco, é quase
minimalista. Seus diálogos dão até a impressão de que saíram de uma fita
gravada. Mas é só a gente lembrar da realidade das transcrições de conversas
gravadas (cada vez mais freqüentes nas denúncias de escândalos pela
imprensa), para perceber como essa impressão é falsa. Estamos exatamente
diante daquele processo que Carlos Drummond de Andrade descreveu tão
bem, ao dizer que queria a beleza da simplicidade - mas não a beleza do que
nasceu simples e sim a beleza do que ficou simples. Fruto de atenção
impiedosa, muito trabalho e aguda consciência de como cortar.
Que ninguém se engane. Pode parecer que Luis Fernando Verissimo é que
nem passarinho: abre o bico e sai cantando sem qualquer esforço, puro dom
natural. Mas em arte
isso não existe. E estamos falando de um artista da palavra. Alguém que vê a
linguagem como dizia o crítico Roland Barthes para caracterizar um escritor.
Se alguém duvida, vá direto a uma das crônicas selecionadas, como
"Palavreado". Ou "Defenestração". Mas se não quiser pensar em nada disso,
não faz mal. Relaxe e
aproveite. Curta as histórias, as piadas, o jeito de falar. Seja nos relatos de
desencontros que chamamos de Equívocos, nas historinhas com moral
escondida que batizei de Fábulas, nas divagações sobre um tema (Falando
Sérío), nas memórias (Outros Tempos), nas brincadeiras com a linguagem ou
o estilo. Sempre uma gostosura. Puro prazer. Um jardim de delícias.
Depois de ler este livro, duvido que algum jovem ainda seja capaz de dizer,
sinceramente, que não curte ler. E, para não ficar achando que só gosta deste
livro, que leia os outros do autor. Aposto que, em sua maioria, os novos
leitores vão se viciar em livro e sair procurando outros textos, de outros
autores. Com vontade de, um dia, chegar a escrever assim. Quem sabe? O
Verissimo nunca pensou que ia ser escritor quando crescesse. Seu negócio
era mesmo um bom solo de saxofone, instrumento em que ainda arrasa,
escondido. Mas com essa história de ser músico, desenvolveu tanto o ouvido
que acabou assim: hoje ele ouve (e conta pra nós) até o que pensamos,
sentimos e sonhamos em silêncio. Em qualquer idade.

=====================
EQUÍVOCOS
A Espada
O Marajá
O Homem Trocado
Suflê de Chuchu
Sozinhos
A Foto

OUTROS TEMPOS
A Bola
História Estranha
Vivendo e...
Adolescência - Rosquinha

DE OLHO NA LINGUAGEM
Sexa
Pá, Pá, Pá
Defenestração
Timtim
Papos
O Jargão
Pudor
Palavreado

FÁBULAS
A Novata
Bobagem
Hábito Nacional

FALANDO SÉRIO
Pode Acontecer
Direitos Humanos
Segurança
Fobias
Anedotas
Da Timidez
ABC

EXERCÍCIOS DE ESTILO
Amor
Um, Dois, Três
O Ator
O Recital
Siglas
Rápido
O Classificado Através da História
=====================

EQUÍVOCOS

A Espada

Uma família de classe média alta. Pai, mulher, um filho de sete anos. É a
noite do dia em que o filho fez sete anos. A mãe recolhe os detritos da festa.
O pai ajuda o filho a guardar os presentes que ganhou dos amigos. Nota que
o filho está quieto e sério, mas pensa: "É o cansaço." Afinal ele passou o dia
correndo de um lado para o outro, comendo cachorro-quente e sorvete,
brincando com os convidados por dentro e por fora da casa. Tem que estar
cansado.
- Quanto presente, hein, filho?
- É.
- E esta espada. Mas que beleza. Esta eu não tinha visto. - Pai...
- E como pesa! Parece uma espada de verdade. É de metal mesmo. Quem foi
que deu?
- Era sobre isso que eu queria falar com você.
O pai estranha a seriedade do filho. Nunca o viu assim. Nunca viu nenhum
garoto de sete anos sério assim. Solene assim. Coisa estranha... O filho tira a
espada da mão do pai. Diz:
- Pai, eu sou Thunder Boy.
- Thunder Boy?
- Garoto Trovão.
- Muito bem, meu filho. Agora vamos pra cama.
- Espere. Esta espada. Estava escrito. Eu a receberia quando fizesse sete
anos.
O pai se controla para não rir. Pelo menos a leitura de história em quadrinhos
está ajudando a gramática do guri. "Eu a receberia..." O guri continua.
- Hoje ela veio. É um sinal. Devo assumir meu destino. A espada passa a um
novo Thunder Boy a cada geração. Tem sido assim desde que ela caiu do
céu, no vale sagrado de Bem Tael, há sete mil anos, e foi empunhada por
Ramil, o primeiro Garoto Trovão.
O pai está impressionado. Não reconhece a voz do filho. E a gravidade do
seu olhar. Está decidido. Vai cortar as histórias em quadrinhos por uns
tempos.
- Certo, filho. Mas agora vamos...
- Vou ter que sair de casa. Quero que você explique à mamãe. Vai ser duro
para ela. Conto com você para apoiá-la. Diga que estava escrito. Era o meu
destino.
- Nós nunca mais vamos ver você? - pergunta o pai, resolvendo entrar no
jogo do filho enquanto o encaminha, sutilmente, para a cama.
- Claro que sim. A espada do Thunder Boy está a serviço do bem e da justiça.
Enquanto vocês forem pessoas boas e justas poderão contar com a minha
ajuda.
- Ainda bem - diz o pai.
E não diz mais nada. Porque ve o filho dirigir-se para a janela do seu quarto,
e erguer a espada como uma cruz, e gritar para os céus "Ramil!". E ouve um
trovão que faz estremecer a casa. E vê a espada iluminar-se e ficar azul. E o
seu filho também.
O pai encontra a mulher na sala. Ela diz:
- Viu só? Trovoada. Vá entender este tempo.
- Quem foi que deu a espada pra ele?
- Não foi você? Pensei que tivesse sido você.
- Tenho uma coisa pra te contar.
- O que é?
- Senta, primeiro.


O Marajá

A família toda ria de dona Morgadinha e dizia que ela estava sempre
esperando a visita do Marajá de Jaipur. Dona Morgadinha não podia ver uma
coisa fora do lugar, uma ponta de poeira em seus móveis ou uma mancha em
seus vidros e cristais. Gemia baixinho quando alguém esquecia um sapato no
corredor, uma toalha no quarto ou - ai, ai, ai - uma almofada torta no sofá da
sala. Baixinha, resoluta, percorria a casa com uma flanela na mão, o olho
vivo contra qualquer incursão do pó, da cinza, do inimigo nos seus domínios.
Dona Morgadinha era uma alma simples. Não lia jornal, não lia nada.
Achava que jornal sujava os dedos e livro juntava mofo e bichos. O marido
de dona Morgadinha, que ela amava com devoção apesar do seu hábito de
limpar a orelha com uma tampa de caneta Bic, estabelecera um limite para
sua compulsão de limpeza. Ela não podia entrar na sua biblioteca. Sua
jurisdição acabava na porta. Ali dentro só ele podia limpar, e nunca limpava.
E, nas raras vezes em que dona Morgadinha chegava à porta
do escritório proibido para falar com o marido, este fazia questão de desafiála.
Botava os pés em cima dos móveis. Atirava os sapatos longe. Uma vez
chegara a tirar uma meia e jogar em cima da lâmpada só para ver a cara da
mulher. Sacudia a ponta do charuto sobre um cinzeiro cheio e errava
deliberadamente o alvo. Dona Morgadinha então fechava os olhos e, incapaz
de se controlar, lustrava com a sua flanela o trinco da porta.
O marido de dona Morgadinha contava, entre divertido e horrorizado, da vez
que levara a mulher a uma recepção diplomática.
- Percorremos a fila de recepção, e quando vi a Morgadinha estava sendo
apresentada ao embaixador. O embaixador se curvou, fez uma reverência, e
de repente a Morgadinha levou a mão e tirou um fio de cabelo da lapela do
embaixador!
- Não pude resistir - explicava dona Morgadinha, séria, entre as risadas dos
outros.
- E ainda deu uma espanada, com a mão, no seu ombro.
- Caspa - suspirava dona Morgadinha, desiludida com o corpo diplomático.
Quis o destino que os filhos de dona Morgadinha puxassem pelo pai no
relaxamento e na irreverência. Todos os três.
- Meu filho, aí não é lugar de deixar os livros da escola.
- Qual é, mãe? Está esperando o Marajá?
- Minha filha, a sala não é lugar de cortar as unhas.
- Ih, hoje é dia do Marajá chegar.
- Oscar, na mesa?!
- Quando o Marajá vier almoçar, eu prometo que não faço isto. Certa manhã
bateram à porta. Dona Morgadinha, que comandava a faxina diária da casa
com severidade militar, fez sinal para as empregadas de que ela mesma iria
abrir. Na porta estava um homem moreno, de terno, gravata - e turbante!
Dona Morgadinha, que uma vez brigara com o carteiro porque a sua calça
estava sem friso, olhou o homem de alto a baixo e não encontrou o que dizer.
- Dona Morgadinha?
- Sim.
- Meu amo manda o seu cartão e pede permissão para vir visitá-la às cinco.
Dona Morgadinha olhou o cartão que o homem lhe entregara. Ali estava,
com todas as letras douradas, "Marajá de Jaipur". Não conseguiu falar. Fez
que sim com a cabeça, desconcertada. O homem fez uma mesura e
desapareceu antes que dona Morgadinha recuperasse a fala.
As empregadas receberam ordens de recomeçar a faxina, do princípio. Dona
Morgadinha anunciou para a família que naquele dia não haveria almoço.
Não queria cheiro de comida na casa. E era bom todos saírem para a rua até a
noite, para não haver perigo de deslocarem as almofadas. Pai e filhos se
entreolharam e concordaram:
- O Marajá vem hoje.
Dona Morgadinha apenas sorriu. E estava com o mesmo sorriso quando o
marido e os filhos chegaram em casa à noite, depois de comerem um
cheeseburger na esquina, fazendo bastante barulho e manchando a roupa.
Dona Morgadinha não contou para ninguém da visita do Marajá. Do seu
terno branco, do rubi no seu turbante, da sua barba grisalha e distinta. E da
conversa que tinham tido, das cinco às sete, sozinhos, entre goles de chá e
mordiscadas em sanduíches de aspargo, sobre coisas distantes, sobre o linho
e o mármore e a purificação dos espíritos. Naquela noite o marido de dona
Morgadinha surpreendeu a mulher com o olhar perdido na frente do espelho.
Ela estava tão distraída que foi para a cama sem escovar as unhas, usar o
colírio e rearrumar os armários, como fazia sempre.
O Marajá combinou com dona Morgadinha que voltaria dois dias depois, à
mesma hora. Estes dois dias dona Morgadinha passou sentada, sem notar
nada, esquecida até
da sua flanela. O filho mais velho chegou a trazer um vira-lata da rua para
fazer xixi no pé da poltrona, mas não conseguiu despertar dona Morgadinha
do seu devaneio.
Depois de duas semanas de visitas constantes do Marajá e do mais absoluto
descaso de dona Morgadinha pela higiene da família e da casa, o marido
resolveu que já era demais. Procurou o seu amigo Turcão, que era árabe e
tinha cara de hindu e que ele contratara para se fingir de Marajá e fazer uma
brincadeira com a mulher, e disse que era hora de acabar com a brincadeira.
Turcão, meio sem jeito, disse que com ele tudo bem, mas dona Morgadinha...
- O quê? - quis saber o marido, desconfiado...
- Ela levou a sério. Está falando até em fugir comigo e ir morar no mewpalácio
em Jaipur. Negócio chato. Acho melhor contar a verdade para ela e...
Mas o marido de dona Morgadinha percebeu o que fizera. E percebeu que
com as almas simples não se brinca. Se descobrisse que fora enganada, dona
Morgadinha era capaz de se matar, engolindo detergente. Não, não. Ela não
merecia aquilo. Compungido, o marido pediu ao Turcão que continuasse a
visitar a mulher. Mas tentasse desiludi-la.
Dando um arroto. Sei lá.


O Homem Trocado

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de
recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.
- Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.
- Eu estava com medo desta operação...
- Por quê? Não havia risco nenhum.
- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos...
E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca
de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de
orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos
redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou
com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não
soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.
- E o meu nome? Outro engano.
- Seu nome não é Lírio?
- Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e...
Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não
fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na
universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.
- Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês
passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.
- O senhor não faz chamadas interurbanas?
- Eu não tenho telefone!
Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram
felizes.
- Por quê?
- Ela me enganava.
Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas
que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico
dizer:
- O senhor está desenganado.
Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma
simples apendicite.
- Se você diz que a operação foi bem...
A enfermeira parou de sorrir.
- Apendicite? - perguntou, hesitante.
- É. A operação era para tirar o apêndice.
- Não era para trocar de sexo?


Suflê de Chuchu

Houve uma grande comoção em casa com o primeiro telefonema da Duda, a
pagar, de Paris. O primeiro telefonema desde que ela embarcara, mochila nas
costas (a Duda, que em casa não levantava nem a sua roupa do chão!), na
Varig, contra a vontade do pai e da mãe. Você nunca saiu de casa sozinha,
minha filha! Você não sabe uma palavra de francês! Vou e pronto. E fora. E
agora, depois de semanas de aflição, de "onde anda essa menina?", de "você
não devia ter deixado, Eurico!", vinha o primeiro sinal de vida. Da Duda, de
Paris.
- Minha filha...
- Não posso falar muito, mãe. Como é que se faz café?
- O quê?
- Café, café. Como é que se faz?
- Não sei, minha filha. Com água, com... Mas onde é que você está, Duda?
- Estou trabalhando de "au pair" num apartamento. Ih, não posso falar mais.
Eles estão chegando. Depois eu ligo. Tchau!
O pai quis saber detalhes. Onde ela estava morando?
- Falou alguma coisa sobre "opér".
- Deve ser "operá". O francês dela não melhorou...
Dias depois, outra ligação. Apressada como a primeira. A Duda queria saber
como se mudava fralda. Por um momento, a mãe teve um pensamento louco.
A Duda teve um filho de um francês! Não, que bobagem, não dava tempo.
Por que você quer saber, minha filha?
- Rápido, mãe. A criança tá borrada!
Ninguém em casa podia imaginar a Duda trocando fraldas. Ela, que tinha
nojo quando o irmão menor espirrava.
- Pobre criança... - comentou o pai.
Finalmente, um telefonema sem pressa da Duda. Os patrões tinham saído, o
cagão estava dormindo, ela podia contar o que estava lhe acontecendo. "Au
pair" era empregada, faz-tudo. E ela fazia tudo na casa. A princípio tivera
alguma dificuldade com os aparelhos. Nunca notara antes, por exemplo, que
o aspirador de pó precisava ser ligado numa tomada. Mas agora estava uma
opér "formidable". E Duda enfatizara a pronúncia francesa. "Formidable." Os
patrões a adoravam. E ela prometera que na semana seguinte prepararia uma
autêntica feijoada brasileira para eles e alguns amigos.
- Mas, Duda, você sabe fazer feijoada?
- Era sobre isso que eu queria falar com você, mãe. Pra começar, como é que
se faz arroz?
A mãe mal pôde esperar o telefonema que a Duda lhe prometera, no dia
seguinte ao da feijoada.
- Como foi, minha filha. Conta!
- Formidable! Um sucesso. Para o próximo jantar, vou preparar aquela sua
moqueca.
- Pegue o peixe... - começou a mãe, animadíssima.
A moqueca também foi um sucesso. Duda contou que uma das amigas da sua
patroa fora atrás dela, na cozinha, e cochichara uma proposta no seu ouvido:
o dobro do que ela ganhava ali para ser opér na sua casa. Pelo menos fora
isso que ela entendera. Mas Duda não pretendia deixar seus patrões. Eles
eram uns amores. Iam ajudá-la a regularizar a sua situação na França.
Daquele jeito, disse Duda a sua mãe, ela tão cedo não voltava ao Brasil.
É preciso compreender, portanto, o que se passava no coração da mãe
quando a Duda telefonou para saber como era a sua receita de suflê de
chuchu. Quase não usavam o chuchu na França, e a Duda dissera a seus
patrões que suflê de chuchu era um prato típico brasileiro e sua receita era
passada de geração a geração na floresta onde o chuchu, inclusive, era
considerado afrodisíaco. Coração de mãe é um pouco como as Caraíbas.
Ventos se cruzam, correntes se chocam, e uma área de tumultos naturais. A
própria dona daquele coração não saberia descrever os vários impulsos que o
percorreram no segundo que precedeu sua decisão de dar à filha a receita
errada, a receita de um fracasso. De um lado o desejo de que a filha fizesse
bonito e também - por que não admitir? - uma certa curiosidade com a
repercussão do seu suflê de chuchu na terra, afinal, dos suflês, do outro o
medo de que a filha nunca mais voltasse, que a Duda se consagrasse como a
melhor opér da Europa e não voltasse nunca mais. Todo o destino num suflê.
A mãe deu a receita errada. Com o coração apertado. Proporções
grotescamente deformadas. A receita de uma bomba.
Passaram-se dias, semanas, sem uma notícia da Duda. A mãe imaginando o
pior. Casais intoxicados. Jantar em Paris acaba no hospital. Brasileira presa.
Prato selvagem enluta famílias, receita infernal atribuída à mãe de
trabalhadora clandestina, Interpol mobilizada. Ou imaginando a chegada de
Duda em casa, desiludida com sua aventura parisiense, sua carreira de opér
encerrada sem glória, mas pronta para tentar outra vez o vestibular.
O que veio foi outro telefonema da Duda, um mês depois. Apressada de
novo. No fundo, o som de bongos e maracas.
- Mãe, pergunta pro pai como é a letra de Cubanacã!
- Minha filha...
- Pergunta, é do tempo dele. Rápido que eu preciso pro meu número.
Também houve um certo conflito no coração do pai, quando ouviu a
pergunta. Arrá, ela sempre fizera pouco do seu gosto musical e agora
precisava dele. Mas o segundo impulso venceu:
- Diz pra essa menina voltar pra casa. JÁ!


Sozinhos

Esta idéia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me
arrependi. Mas já estava tida, não adiantava mais. Você, leitor, no entanto,
tem uma escolha. Pode parar aqui, e se poupar, ou ler até o fim e
provavelmente nunca mais dormir. Vejo que decidiu continuar. Muito bem,
vamos em frente. Talvez, posta no papel, a idéia perca um pouco do seu
poder de susto. Mas não posso garantir nada. É assim:
Um casal de velhos mora sozinho numa casa. Já criaram os filhos, os netos já
estão grandes, só lhes resta implicar um com o outro. Retomam com novo
fervor uma discussão antiga. Ela diz que ele ronca quando dorme, ele diz que
é mentira.
- Ronca.
- Não ronco.
- Ele diz que não ronca - comenta ela, impaciente, como se falasse com uma
terceira pessoa.
Mas não existe outra pessoa na casa. Os filhos raramente visitam. Os netos,
nunca. A empregada vem de manhã, faz o almoço, deixa o jantar e sai cedo.
Ficam os dois sozinhos.
- Eu devia gravar os seus roncos, pra você se convencer - diz ela. E em
seguida tem a idéia infeliz. - É o que eu vou fazer! Esta noite, quando você
dormir, vou ligar o gravador e gravar os seus roncos.
- Humrfm - diz o velho.
Você, leitor, já deve estar sentindo o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu
não posso parar de escrever. Às idéias não podem ser desperdiçadas, mesmo
que nos custem amigos, a vida ou o sono. Imagine se Shakespeare tivesse se
horrorizado com suas próprias idéias e deixado de escrevê-las, por puro
comedimento. Não que eu queira me comparar a Shakespeare. Shakespeare
era bem mais magro. Tenho que exercer este ofício, esta danação. Você, no
entanto, não é obrigado a me acompanhar, leitor. Vá passear, vá tomar um
sol. Uma das maneiras de controlar a demência solta no mundo e deixar os
escritores falando sozinhos, exercendo sozinhos a sua profissão malsã, o seu
vício solitário. Você ainda está lendo. Você é pior do que eu, leitor. Você
tinha escolha.
Sozinhos. Os velhos sozinhos na casa. Os dois vão para a cama. Quando o
velho dorme, a velha liga o gravador. Mas em poucos minutos a velha
também dorme. O gravador fica ligado, gravando. Pouco depois a fita acaba.
Na manhã seguinte, certa do seu triunfo, a velha roda a fita. Ouvem-se alguns
minutos de silêncio. Depois, alguém roncando.
- Rarrá! - diz a velha, feliz.
Pouco depois ouve-se o ronco de outra pessoa, a velha também ronca!
- Rarrá! - diz o velho, vingativo.
E em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro. Uma
voz sussurrando, leitor. Uma voz indefinida. Pode ser de homem, de mulher
ou de criança. A princípio - por causa dos roncos - não se distingue o que ela
diz. Mas aos poucos as palavras vão ficando claras. São duas vozes.
É um diálogo sussurrado.
"Estão prontos?"
"Não, acho que ainda não..."
"Então vamos voltar amanhã..."


A Foto

Foi numa festa de família, dessas de fim de ano. Já que o bisavô estava morre
não morre, decidiram tirar uma fotografia de toda a família reunida, talvez
pela última vez. A bisa e o bisa sentados, filhos, filhas, noras, genros e netos
em volta, bisnetos na frente, esparramados pelo chão. Castelo, o dono da
câmara, comandou a pose, depois tirou o olho do visor e ofereceu a câmara a
quem ia tirar a fotografia. Mas quem ia tirar a fotografia?
- Tira você mesmo, ué.
- Ah, é? E eu não saio na foto?
O Castelo era o genro mais velho. O primeiro genro. O que sustentava os
velhos. Tinha que estar na fotografia.
- Tiro eu - disse o marido da Bitinha. - Você fica aqui - comandou a Bitinha.
Havia uma certa resistência ao marido da Bitinha na família. A Bitinha,
orgulhosa, insistia para que o marido reagisse. "Não deixa eles te
humilharem, Mário Cesar", dizia sempre. O Mário Cesar ficou firme onde
estava, do lado da mulher. A própria Bitinha fez a sugestão maldosa:
- Acho que quem deve tirar é o Dudu...
O Dudu era o filho mais novo de Andradina, uma das noras, casada com o
Luiz Olavo. Havia a suspeita, nunca claramente anunciada, de que não fosse
filho do Luiz Olavo.
O Dudu se prontificou a tirar a fotografia, mas a Andradina segurou o filho.
- Só faltava essa, o Dudu não sair. E agora?
- Pô, Castelo. Você disse que essa câmara só faltava falar. E não tem nem
timer!
O Castelo impávido. Tinham ciúmes dele. Porque ele tinha um Santana do
ano. Porque comprara a câmara num duty free da Europa. Aliás, o apelido
dele entre os outros era "Dutifri", mas ele não sabia.
- Revezamento - sugeriu alguém. - Cada genro bate uma foto em que ele não
aparece, e...
A idéia foi sepultada em protestos. Tinha que ser toda a família reunida em
volta da bisa. Foi quando o próprio bisa se ergueu, caminhou decididamente
até o Castelo e arrancou a câmara da sua mão. - Dá aqui.
- Mas seu Domício... - Vai pra lá e fica quieto.
- Papai, o senhor tem que sair na foto. Senão não tem sentido! - Eu fico
implícito - disse o velho, já com o olho no visor. E antes que houvesse mais
protestos, acionou a câmara, tirou a foto e foi dormir.


OUTROS TEMPOS

A Bola

O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao
ganhar a sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro.
Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola.
O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse "Legal!". Ou o que os
garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem
magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa.
- Como e que liga? - perguntou.
- Como, como é que liga? Não se liga.
O garoto procurou dentro do papel de embrulho. - Não tem manual de
instrução?
O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os
tempos são decididamente outros.
- Não precisa manual de instrução.
- O que é que ela faz?
- Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
- O quê?
- Controla, chuta...
- Ah, então é uma bola.
- Claro que é uma bola.
- Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
- Você pensou que fosse o quê?
- Nada, não.
O garoto agradeceu, disse "Legal" de novo, e dali a pouco o pai o encontrou
na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um
videogame. Algo chamado Monster Baú, em que times de monstrinhos
disputavam a posse de uma bola em forma de blip eletrônico na tela ao
mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente.
O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava
ganhando da máquina.
O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu
equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.
- Filho, olha.
O garoto disse "Legal" mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a
bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de
couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa
idéia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.


História Estranha

Um homem vem caminhando por um parque quando de repente se vê com
sete anos de idade. Está com quarenta, quarenta e poucos. De repente dá com
ele mesmo chutando uma bola perto de um banco onde está a sua babá
fazendo tricô. Não tem a menor dúvida de que é ele mesmo. Reconhece a sua
própria cara, reconhece o banco e a babá.
Tem uma vaga lembrança daquela cena. Um dia ele estava jogando bola no
parque quando de repente aproximou-se um homem e... O homem aproximase
dele mesmo. Ajoelha-se, põe as mãos nos seus ombros e olha nos seus
olhos. Seus olhos se enchem de lágrimas. Sente uma coisa no peito. Que
coisa é a vida. Que coisa pior ainda é o tempo.
Como eu era inocente. Como meus olhos eram limpos. O homem tenta dizer
alguma coisa, mas não encontra o que dizer. Apenas abraça a si mesmo,
longamente. Depois sai caminhando, chorando, sem olhar para trás.
O garoto fica olhando para a sua figura que se afasta. Também se
reconheceu. E fica pensando, aborrecido: quando eu tiver quarenta, quarenta
e poucos anos, como eu vou ser sentimental!



Vivendo e...

Eu sabia fazer pipa e hoje não sei mais. Duvido que se hoje pegasse uma bola
de gude conseguisse equilibrá-la na dobra do dedo indicador sobre a unha do
polegar, quanto mais jogá-la com a precisão que tinha quando era garoto.
Outra coisa: acabo de procurar no dicionário, pela primeira vez, o significado
da palavra "gude".
Quando era garoto nunca pensei nisso, eu sabia o que era gude. Gude era
gude.
Juntando-se as duas mãos de um determinado jeito, com os polegares para
dentro, e assoprando pelo buraquinho, tirava-se um silvo bonito que
inclusive variava de tom conforme o posicionamento das mãos. Hoje não sei
mais que jeito é esse. Eu sabia a fórmula de fazer cola caseira. Algo
envolvendo farinha e água e muita confusão na cozinha, de onde éramos
expulsos sob ameaças. Hoje não sei mais. A gente começava a contar depois
de ver um relâmpago e o número a que chegasse quando ouvia a trovoada,
multiplicado por outro número, dava a distância exata do relâmpago. Não me
lembro mais dos números.
Ainda no terreno dos sons: tinha uma folha que a gente dobrava e, se ela
rachasse de um certo jeito, dava um razoável pistom em miniatura. Nunca
mais encontrei a tal folha. E espremendo-se a mão entre o braço e o corpo,
claro, tinha-se o chamado trombone axilar, que muito perturbava os mais
velhos. Não consigo mais tirar o mesmo som. É verdade que não tenho
tentado com muito empenho, ainda mais com o país na situação em que está.
Lembro o orgulho com que consegui, pela primeira vez, cuspir corretamente
pelo espaço adequado entre os dentes de cima e a ponta da língua de modo
que o cuspe ganhasse distância e pudesse ser mirado. Com prática,
conseguia-se controlar a trajetória elíptica da cusparada com uma mínima
margem de erro. Era puro instinto. Hoje o mesmo feito requereria
complicados cálculos de balística, e eu provavelmente só acertaria a frente da
minha camisa. Outra habilidade perdida.
Na verdade, deve-se revisar aquela antiga frase. É vivendo e desaprendendo.
Não falo daquelas coisas que deixamos de fazer porque não temos mais as
condições físicas e a coragem de antigamente, como subir em bonde andando
- mesmo porque não há mais bondes andando. Falo da sabedoria
desperdiçada, das artes que nos abandonaram.
Algumas até úteis. Quem nunca desejou ainda ter o cuspe certeiro de garoto
para acertar em algum alvo contemporâneo, bem no olho, e depois sair
correndo? Eu já.


Adolescência
Rosquinha

O apelido dele era "cascão" e vinha da infância. Uma irmã mais velha
descobrira uma mancha escura que subia pela sua perna e que a mãe,
apreensiva, a princípio atribuiu a
seguida descobriu que era sujeira mesmo.
- Você não toma banho, menino?
- Tomo, mãe.
- E não se esfrega?
Aquilo já era pedir demais. E a verdade é que muitas vezes seus banhos eram
representações. Ele fechava a porta do banheiro, ligava o chuveiro, forte,
para que a mãe ouvisse o barulho, mas não entrava no chuveiro. Achava que
dois banhos por semana era o máximo de que uma pessoa sensata precisava.
Mais do que isso era mania.
O apelido pegou e, mesmo na sua adolescência, eram freqüentes as alusões
familiares à sua falta de banho. Ele as agüentava estoicamente. Caluniadores
não mereciam resposta. Mas um dia reagiu.
- Sujo, não.
- Ah, é? - disse a irmã. - E isto o que é?
Com o dedo ela levantara do seu braço um filete de sujeira.
- Rosquinha não vale.
- Como não vale?
- Rosquinha, qualquer um.
Entusiasmado com a própria tese, continuou:
- Desafio qualquer um nesta casa a fazer o teste da rosquinha! A irmã, que
tomava dois banhos por dia, o que ele classificava de exibicionismo, aceitou
o desafio.
Ele advertiu que passar o dedo, só, não bastava. Tinha que passar com
decisão. E, realmente, o dedo levantou, da dobra do braço da irmã, uma
rosquinha, embora ínfima, de sujeira.
- Viu só - disse ele, triunfante. - E digo mais: ninguém no mundo está livre
de uma rosquinha.
- Ah, essa não. No mundo? Manteve a tese.
- Ninguém.
- A rainha Juliana?
- Rosquinha. No pé. Batata.
No dia seguinte, no entanto, a irmã estava preparada para derrubar a sua
defesa.
- Cascão... - disse simplesmente. - A Catherine Deneuve. Ele hesitou. Pensou
muito. Depois concedeu. A Catherine Deneuve, realmente, não.
A irmã, sadicamente, ainda fingiu que queria ajudar.
- Quem sabe atrás da orelha?
- Não, não - disse o Cascão tristemente, renunciando à sua tese. - A
Catherine Deneuve, nem atrás da orelha.
*
Já o Jander tinha quatorze anos, a cara cheia de espinhas e como se não
bastasse isso, inventou de estudar violino.
- Violino?! - horrorizou-se a família.
- É.
- Mas Jander...
- Olha que eu tenho um ataque.
Sempre que era contrariado, o Jander se atirava no chão e começava a
espernear. Compraram um violino para ele.
O Jander dedicou-se ao violino obsessivamente. Ensaiava dia e noite.
Trancava-se no quarto para ensaiar. Mas o som do violino atravessava portas
e paredes. O som do violino se espalhava pela vizinhança.
Um dia a porta do quarto do Jander se abriu e entrou uma moça com um
copo de leite.
- Quié? - disse o Jander, antipático como sempre.
- Sua mãe disse que é para você tomar este leite. Você quase não jantou.
- Quem é você?
- A nova empregada.
Seu nome era Vandirene. Na quadra de ensaios da escola era conhecida como
"Vandeca Furacão".
Ela botou o copo de leite sobre a mesa-de-cabeceira, mas não saiu do quarto.
Disse:
- Bonito, seu violino.
E depois:
- Me mostra como se segura?
Depois a vizinhança suspirou aliviada. Não se ouviu mais o som do violino
aquela noite.
O pai de Jander reuniu-se com os vizinhos.
- Parece que deu certo.
- É.
- Não vão esquecer o nosso trato.
- Pode deixar.
No fim do mês todos se cotizariam para pagar o salário da Vandirene. A mãe
do Jander não ficou muito contente. Pobre do menino. Tão moço. Mas era a
Vandirene ou o violino.
- E outra coisa - argumentou o pai do Jander. - Vai curar as espinhas.


DE OLHO NA LINGUAGEM

Sexa

- Hmmm?
- Como é o feminino de sexo?
- O quê?
- O feminino de sexo.
- Não tem.
- Sexo não tem feminino?
- Não.
- Só tem sexo masculino?
- É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino.
- E como é o feminino de sexo?
- Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.
- Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.
- O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra "sexo" e masculina. O
sexo masculino, o sexo feminino.
- Não devia ser "a sexa”?
- Não.
- Por que não?
- Porque não! Desculpe. Porque não. "Sexo" é sempre masculino.
- O sexo da mulher é masculino?
- É. Não! O sexo da mulher é feminino.
- E como é o feminino?
- Sexo mesmo. Igual ao do homem.
- O sexo da mulher é igual ao do homem?
- É. Quer dizer... Olha aqui. Tem o sexo masculino e o sexo feminino, certo?
- Certo.
- São duas coisas diferentes.
- Então como é o feminino de sexo?
- É igual ao masculino.
- Mas não são diferentes?
- Não. Ou, são! Mas a palavra é a mesma. Muda o sexo, mas não muda a
palavra.
- Mas então não muda o sexo. É sempre masculino.
- A palavra é masculina.
- Não. "A palavra' é feminino. Se fosse masculina seria "o pal..."
- Chega! Vai brincar, vai.
O garoto sai e a mãe entra. O pai comenta:
- Temos que ficar de olho nesse guri...
- Por quê?
- Ele só pensa em gramática.


Pá, Pá, Pá

A americana estava há pouco tempo no Brasil. Queria aprender o português
depressa, por isto prestava muita atenção em tudo que os outros diziam. Era
daquelas americanas que prestam muita atenção.
Achava curioso, por exemplo, o "pois é". Volta e meia, quando falava com
brasileiros, ouvia o "pois é". Era uma maneira tipicamente brasileira de não
ficar quieto e ao mesmo tempo não dizer nada. Quando não sabia o que dizer,
ou sabia mas tinha preguiça, o brasileiro dizia "pois é". Ela não agüentava
mais o "pois é".
Também tinha dificuldade com o "pois sim" e o "pois não". Uma vez quis
saber se podia me perguntar uma coisa.
- Pois não - disse eu, polidamente.
- É exatamente isso! O que quer dizer "pois não"?
- Bom. Você me perguntou se podia fazer uma pergunta. Eu disse "pois não".
Quer dizer, "pode, esteja à vontade, estou ouvindo, estou às suas ordens..."
- Em outras palavras, quer dizer "sim".
- É.
- Então por que não se diz "pois sim"?
- Porque "pois sim" quer dizer "não".
- O quê?!
- Se você disser alguma coisa que não é verdade, com a qual eu não
concordo, ou acho difícil de acreditar, eu digo "pois sim".
- Que significa "pois não"?
- Sim. Isto é, não. Porque "pois não" significa "sim".
- Por quê?
- Porque o "pois", no caso, dá o sentido contrário, entende? Quando se diz
"pois não", está-se dizendo que seria impossível, no caso, dizer "não". Seria
inconcebível dizer "não". Eu dizer não? Aqui, ó.
- Onde?
- Nada. Esquece. Já "pois sim" quer dizer "ora, sim!". "Ora se aceitar isso."
"Ora, não me faça rir. Rã, rã, rã."
- "Pois" quer dizer "ora"?
- Ahn... Mais ou menos.
- Que língua!
Eu quase disse: "E vocês, que escrevem 'tough' e dizem 'tâf'?", mas me
contive. Afinal, as intenções dela eram boas. Queria aprender. Ela insistiu:
- Seria mais fácil não dizer o "pois".
Eu já estava com preguiça.
- Pois é.
- Não me diz "pois é"!
Mas o que ela não entendia mesmo era o "pá, pá, pá".
- Qual o significado exato de "pá, pá, pá".
- Como é?
- "Pá, pá, pá".
- "Pá" é pá. "Shovel". Aquele negócio que a gente pega assim e...
- "Pá" eu sei o que é. Mas "pá" três vezes?
- Onde foi que você ouviu isso?
- É a coisa que eu mais ouço. Quando brasileiro começa a contar história,
sempre entra o "pá, pá, pá".
Como que para ilustrar nossa conversa, chegou-se a nós, providencialmente,
outro brasileiro. E um brasileiro com história:
- Eu estava ali agora mesmo, tomando um cafezinho, quando chega o Túlio.
Conversa vai, conversa vem e coisa e tal e pá, pá, pá... Eu e a americana nos
entreolhamos.
- Funciona como reticências - sugeri eu. - Significa, na verdade, três
pontinhos. "Ponto, ponto, ponto."
- Mas por que "pá" e não "pó"? Ou "pi" ou "pu"? Ou "etcéterá'?
Me controlei para não dizer - "E o problema dos negros nos Estados
Unidos?".
Ela continuou:
- E por que tem que ser três vezes?
- Por causa do ritmo. "Pá, pá, pá." Só "pá, pá" não dá.
- E por que "pá"?
- Porque sei lá - disse, didaticamente.
O outro continuava sua história. História de brasileiro não se interrompe
facilmente.
- E aí o Túlio com uma lengalenga que vou te contar. Porque pá, pá, pá...
- É uma expressão utilitária - intervim. - Substitui várias palavras (no caso
toda a estranha história do Túlio, que levaria muito tempo para contar) por
apenas três. É um símbolo de garrulice vazia, que não merece ser
reproduzida. São palavras que...
- Mas não são palavras. São só barulhos. "Pá, pá, pá."
- Pois é - disse eu.
Ela foi embora, com a cabeça alta. Obviamente desistira dos brasileiros. Eu
fui para o outro lado. Deixamos o amigo do Túlio papeando sozinho.


Defenestração

Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o
nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias
em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia
Negra.
Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos.
Aonde eles chegassem, tudo se complicaria.
- Os hermeneutas estão chegando!
- lh, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades
produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a
população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas
recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido
oculto.
- Alô...
- O que é que você quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
- Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado,
nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas.
Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até
um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussufrar no ouvido
das mulheres:
- Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas
defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez
mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os
documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra
cheia de implicações.
Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
- Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada.
Mesmo errada, era a palavra exata.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me
deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo
feminino.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este
só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte.
Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém
ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício
como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
- Les defenestrations. Devem ser proibidas.
- Sim; monsieur le Ministre.
- São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
- Sim, monsieur le Ministre.
- Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido.
Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima
devem ter um cartaz: "Interdit de deffnestrer". Os transgressores serão
multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios
defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no
homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de
defenestradores latentes.
- É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...
- Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a
mãe. Nada com o que se preocupar - diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela
janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a
arquitetura moderna,
com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma
reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suite matrimonial no 17o andar.
- Querida...
- Mmmm?
- Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
- Fala, amor.
- Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
- Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo! Uma multidão cerca
o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e
balbucia:
- Fui defenestrado...
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da
máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair porque resisti.


Timtim

Durante alguns anos, o tintim me intrigou. Tintim por tintim: o que queria
dizer aquilo? Imaginei que fosse alguma misteriosa medida de outros tempos
que sobrevivera
ao sistema métrico, como a braça, a légua, etc. Outro mistério era o triz. Qual
a exata definição de um triz? É uma subdivisão de tempo ou de espaço. As
coisas deixam de acontecer por um triz, por uma fração de segundo ou de
milímetro. Mas que fração? O triz talvez correspondesse a meio tintim, ou o
tintim a um décimo de triz.
Tanto o tintim quanto o triz pertenceriam ao obscuro mundo das microcoisas.
Há quem diga que não existe uma fração mínima de matéria, que tudo pode
ser dividido e subdividido. Assim como existe o infinito para fora - isto e, o
espaço sem fim, depois que o Universo acaba - existiria o infinito para
dentro. A menor fração da menor partícula do último átomo ainda seria
formada por dois trizes, e cada triz por dois tintins, e cada tintim por dois
trizes, e assim por diante, até a loucura.
Descobri, finalmente, o que significa tintim. É verdade que, se tivesse me
dado o trabalho de olhar no dicionário mais cedo, minha ignorância não teria
durado tanto. Mas o óbvio, às vezes, e a última coisa que nos ocorre. Está no
Aurelião. Tintim, vocábulo onomatopaico que evoca o tinido das moedas.
Originalmente, portanto, "tintim por tintim" indicava um pagamento feito
minuciosamente, moeda por moeda. Isso no tempo em que as moedas, no
Brasil, tiniam, ao contrário de hoje, quando são feitas de papelão e se chocam
sem ruído. Numa investigação feita hoje da corrupção no país tintim por
tintim ficaríamos tinindo sem parar e chegaríamos a uma nova concepção de
infinito.
Tintim por tintim. A menina muito dada namoraria sim-sim por sim-sim. O
gordo incontrolável progrediria pela vida quindim por quindim. O
telespectador habitual viveria plim-plim por plim-plim. E você e eu vamos
ganhando nosso salário tin por tin (olha aí, a inflação já levou dois tins).
Resolvido o mistério do tintim, que não é uma subdivisão nem de tempo nem
de espaço nem de matéria, resta o triz. O Aurelião não nos ajuda. "Triz", diz
ele, significa por pouco. Sim, mas que pouco? Queremos algarismos,
vírgulas, zeros, definições para "triz". Substantivo feminino. Popular.
"Icterícia." Triz quer dizer icterícia. Ou teremos que mudar todas as nossas
teorias sobre o Universo ou teremos que mudar de assunto. Acho melhor
mudar de assunto. O Universo já tem problemas demais.


Papos

- Me disseram...
- Disseram-me.
- Hein?
- O correto e "disseram-me". Não "me disseram".
- Eu falo como quero. E te digo mais... Ou é "digo-te"? - O quê?
- Digo-te que você...
- O "te" e o "você" não combinam.
- Lhe digo?
- Também não. O que você ia me dizer?
- Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou te partir a
cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?
- Partir-te a cara.
- Pois é. Parti-la hei de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.
- É para o seu bem.
- Dispenso as suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender.
Mais uma correção e eu...
- O quê?
- O mato.
- Que mato?
- Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem?
- Pois esqueça-o e pára-te. Pronome no lugar certo e elitismo!
- Se você prefere falar errado...
- Falo como todo mundo fala. O importante é me entenderem. Ou
entenderem-me?
- No caso... não sei.
- Ah, não sabe? Não o sabes? Sabes-lo não?
- Esquece.
- Não. Como "esquece"? Você prefere falar errado? E o certo é "esquece" ou
"esqueça"? Ilumine-me. Me diga. Ensines-lo-me, vamos.
- Depende.
- Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas não
sabes-o.
- Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.
- Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso
mais dizer-lo-te o que dizer-te-ia.
- Por que?
- Porque, com todo este papo, esqueci-lo.


O Jargão

Sou fascinado pela linguagem náutica, embora minha experiência no mar se
resuma a algumas passagens em transatlânticos, onde a única linguagem
técnica que você precisa saber e "a que horas servem o bufê?". Nunca pisei
num veleiro e se pisasse seria para dar vexame na primeira onda. Eu enjôo
em escada rolante. Mas, na minha imaginação, sou um marinheiro de todos
os calados. Senhor de ventos e de velas e, principalmente, dos
especialíssimos nomes da equipagem.
Me imagino no leme do meu grande veleiro, dando ordens à tripulação:
- Recolher a traquineta!
- Largar a vela bimbão, não podemos perder esse Vizeu.
(O Vizeu é um vento que nasce na costa ocidental da África, faz a volta nas
Malvinas e nos ataca a bombordo, cheirando a especiarias, carcaças de baleia
e, estranhamente, a uma professora que eu tive, no primário.)
- Quebrar o lume da alcatra e baixar a falcatrua.
- Cuidado com a sanfona de Abelardo!
(A sanfona é um perigoso fenômeno que ocorre na vela parruda em certas
condições atmosféricas e que, se não contido a tempo, pode decapitar o
piloto. Até hoje não encontraram a cabeça do comodoro Abelardo.)
- Cruzar a spínola! Domar a espátula! Montar a sirigaita! Tudo a
macambúzio e dois quartos de trela, senão afundamos e o capitão é o
primeiro a pular!
- Cortar o cabo de Eustaquio!
Sempre imaginei que poderia escrever uma coluna de economia usando um
jargão falso assim, com pseudônimo. Não sei quanto tempo duraria até eu ser
descoberto e desmascarado, mas acho que não seria pouco. Não estou
dizendo que quem escreve sobre economia não sabe o que está escrevendo,
ou se aproveita da ignorância generalizada para enganar.
Estou dizendo que a análise econômica é uma arte tão imprecisa que, mesmo
desconfiando do embuste, a maioria hesitaria antes de denunciá-lo. Quem
garantiria que o meu enfoque diferente - minha defesa de um overspread
corretivo sobre a base de pagamentos, por exemplo - não era uma novidade
que merecia estudo, já que ninguém parece mesmo saber o que é o certo?


Pudor

Certas palavras nos dão a impressão de que voam, ao saírem da boca.
"Sílfide", por exemplo. É dizer "Sílfide" e ficar vendo suas evoluções no ar,
como as de uma borboleta. Não tem nada a ver com o que a palavra significa.
"Sílfide", eu sei, é o feminino de "silfo", o espírito do ar, e quer mesmo dizer
uma coisa diáfana, leve, borboleteante. Mas experimente dizer "silfo". Não
voou, certo? Ao contrário da sua mulher, "silfo" não voa. Tem o alcance
máximo de uma cuspida. "Silfo", zupt, plof. A própria palavra "borboleta"
não voa, ou voa mal. Bate as asas, tenta se manter aérea mas choca-se contra
a parede. Sempre achei que a palavra mais bonita da língua portuguesa é
"sobrancelha'. Esta não voa mas paira no ar, como a neblina das manhãs até
ser desmanchada pelo sol. já a terrível palavra "seborréia" escorre pelos
cantos da boca e pinga no tapete.
"Trilhão" era uma palavra pouco usada, antigamente. Uma pessoa podia
nascer e morrer sem jamais ouvir a palavra "trilhão", ou só ouvi-la em vagas
especulações sobre as estrelas do Universo. O "trilhão" ficava um pouco
antes do infinito. Dizia-se "trilhão" em vez de dizer "incalculável" ou "sei
lá". Certa vez (autobiografia) tive de responder a uma questão de Geografia
no colégio. Naquele tempo a pior coisa do mundo era ser chamado a
responder qualquer coisa no colégio. De pé, na frente dos outros e - o pior de
tudo - em voz alta.
Depois descobri que existem coisas piores, como a miséria, a morte e a
comida inglesa. Mas naquela época o pior era aquilo. "Senhor Verissimo!"
Era eu. Era irremediavelmente eu. "Responda, qual e a população da China?"
Eu não sabia. Estava de pé, na frente dos outros, e tinha que dizer em voz
alta o que não sabia. Qual era a população da China? Com alguma presença
de espírito eu poderia dizer: "A senhora quer dizer neste exato momento?",
dando a entender que, como o que mais acontece na China é nascer gente,
uma resposta exata seria impossível. Mas meu espírito não estava ali. Meu
espírito ainda estava em casa, dormindo. "Então, senhor Verissimo, qual é a
população da China?" E eu respondi:
- Numerosa.
Ganhei zero, claro. Mas "trilhão", entende, era sinônimo de "numeroso". Não
era um número, era uma generalização. Você dizia "trilhão" e a palavra subia
como um balão desamarrado, não dava tempo nem para ver a sua cor. E hoje
não passa dia em que não se ouve falar em trilhões. O "trilhão" vai, aos
poucos, se tornando nosso íntimo. É o mais novo personagem da nossa
aflição. Quantos zeros tem um trilhão? Doze, acertei? Se os zeros fossem
pneus, o trilhão seria uma jamanta daquelas de carregar gerador para usina
atômica parada. Felizmente vem aí uma reforma e outra moeda, com menos
zeros e mais respeito. Senão chegaríamos à desmoralização completa.
- E o troco do meu tri? - Serve uma bala?
Desconfio que o que apressará a reforma é a iminência do quatrilhão.
"Quatrilhão" é pior que "seborréia". Depois de dizer "quatrilhão" você tem
que pular para trás, senão ele esmaga os seus pés. E "quatrilhão" não é como,
por exemplo, "otorrino", que cai no chão e corre para um canto.
"Quatrilhão" cai, pesadamente, no chão e fica. Você tenta juntar a palavra do
chão e ela quebra. Tenta remontá-la – fica "trãofiqua" e sobra o agá. A mente
humana, ou pelo menos a mente brasileira, não está preparada para o
"quatrilhão". As futuras gerações precisam ser protegidas do "quatrilhão". As
reformas monetárias, quando vêm, são sempre para acomodar as máquinas
calculadoras e o nosso senso do ridículo, já que caem os zeros mas nada,
realmente, muda. A próxima reforma seria a primeira motivada, também, por
um pudor lingüístico. No momento em que o "quatrilhão" se instalasse no
nosso vocabulário cotidiano, mesmo que fosse só para descrever a dívida
interna, alguma coisa se romperia na alma brasileira. Seria o caos.
E "caos", você sabe. É uma palavra chicle-balão. Pode explodir na nossa
cara.


Palavreado

Gosto da palavra "fornida". é uma palavra que diz tudo o que quer dizer. Se
você lê que uma mulher e "bem fornida", sabe exatamente como ela é. Não
gorda mas cheia, roliça, carnuda. E quente. Talvez seja a semelhança com
"forno". Talvez seja apenas o tipo de mente que eu tenho.
Não posso ver a palavra "lascívia' sem pensar numa mulher, não fornida mas
magra e comprida. Lascívia, imperatriz de Cântaro, filha de Pundonor.
Imagino-a atraindo todos os jovens do reino para a cama real, decapitando os
incapazes pelo fracasso e os capazes pela ousadia.
Um dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza
a Ponte de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista
uma mulher vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de
betume e cabriolé. Segue-a através dos becos de Cântaro até um sumário -
uma espécie de jardim enclausurado -, onde ela deixa cair a bandalheira. É
Lascívia. Ela sobe por um escrutínio, pequena escada estreita, e desaparece
por uma porciúncula.
Lipídio a segue. Vê-se num longo conluio que leva a uma prótese
entreaberta. Ele entra. Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu
pinochet, penteando-se.
Lipídio, que sempre carrega consigo um fanfarrão (instrumento primitivo de
sete cordas), começa a cantar uma balada. Lascívia bate palmas e chama:
- Cisterna! Vanglória!
São suas escravas que vêm prepará-la para os ritos do amor. Lipídio desfazse
de suas roupas - o satrapa, o himpen, os dois fátuos - até ficar só de reles.
Dirige-se
para a cama cantando uma antiga minarete. Lascívia diz:
- Cala-te, sândalo. Quero sentir o seu vespúcio junto ao meu passe-partout.
Atrás de uma cortina, Muxoxo, o algoz, prepara seu longo cadastro para
cortar a cabeça do trovador.
A história só não acaba mal porque o cavalo de Lipídio, Escarcéu, espia pela
janela na hora em que Muxoxo vai decapitar seu dono, no momento entregue
aos sassafrás, e dá o alarme. Lipídio pula da cama, veste seu reles
rapidamente e sai pela janela, onde Escarcéu o espera.
Lascívia manda levantarem a Ponte de Safena, mas tarde demais. Lipídio e
Escarcéu já galopam por motins e valiums, longe da vingança de Lascívia.
*
"Falácia" é um animal multiforme que nunca está onde parece estar. Um dia
um viajante chamado Pseudônimo (não é o seu verdadeiro nome) chega à
casa de um criador de falácias, Otorrino. Comenta que os negócios de
Otorrino devem estar indo muito bem, pois seus campos estão cheios de
falácias. Mas Otorrino não parece muito contente.
Lamenta-se:
- As falácias nunca estão onde parecem estar. Se elas parecem estar no meu
campo e porque estão em outro lugar.
E chora:
- Todos os dias, de manhã, eu e minha mulher, Bazófia, saímos pelos campos
a contar falácias. E cada dia há mais falácias no meu campo. Quer dizer, cada
dia eu acordo mais pobre, pois são mais falácias que eu não tenho.
- Lhe faço uma proposta - disse Pseudônimo. - Compro todas as falácias do
seu campo e pago um pinote por cada uma.
- Um pinote por cada uma? - disse Otorrino, mal conseguindo disfarçar o seu
entusiasmo. - Eu devo não ter umas cinco mil falácias.
- Pois pago cinco mil pinotes e levo todas as falácias que você não tem.
- Feito.
Otorrino e Bazófia arrebanharam as cinco mil falácias para Pseudônimo. Este
abre o seu comichão e começa a tirar pinotes invisíveis e colocá-los na palma
da mão estendida de Otorrino.
- Não estou entendendo - diz Otorrino. - Onde estão os pinotes?
- Os pinotes são como as falácias - explica Pseudônimo. - Nunca estão onde
parecem estar. Você está vendo algum pinote na sua mão?
- Nenhum.
- É sinal de que eles estão aí. Não deixe cair.
E Pseudônimo seguiu viagem com cinco mil falácias, que vendeu para um
frigorífico inglês, o Filho and Sons. Otorrino acordou no outro dia e olhou
com satisfação para o seu campo vazio. Abriu o besunto, uma espécie de
cofre, e olhou os pinotes que pareciam não estar ali. Estava rico!
Na cozinha, Bazófia botava veneno no seu pirão.
*
"Lorota", para mim, é uma manicura gorda. É explorada pelo namorado,
Falcatrua. Vivem juntos num pitéu, um apartamento queno. Um dia batem na
porta. É Martelo, o inspetor italiano.
- Dove está il ruo megano?
- Meu quê?
- Il fistulado del tuo matagoso umbraculo.
- O Falcatrua? Está trabalhando.
- Sei. Com sua tragada de perônios. Magarefe, Barroco, Cantochão e
Acepipe. Conheço bem o quintal. São uns melindres de marca maior.
- Que foi que o Falcatrua fez?
- Está vendendo falácia inglesa enlatada.
- E daí?
- Daí que dentro da lata não tem nada. Parco manolo!


FÁBULAS

A Novata

Sandrinha nunca esqueceu o seu primeiro dia na redação. Os olhares que
recebeu quando se encaminhou para a mesa do editor. De curiosidade. De
superioridade. Ou apenas de indiferença. Do editor não recebeu olhar algum.
- Quem é você? - ele perguntou, sem levantar a cabeça. Sandrinha se
identificou.
- Ah, a novata - disse ele. - Você deve ser das boas. Recém formada e já
botaram a trabalhar comigo. Você sabe o que a espera?
- Bem, eu...
- Esqueça tudo o que aprendeu na escola. Isto aqui é a linha de frente do
jornalismo moderno. Aqui você tem que ter coragem. Garra. Instinto. Você
acha que tem tudo isso?
- Acho que sim.
Ele a olhou pela primeira vez. Seu sorriso era cruel.
- É o que veremos - disse. - já vi muita gente quebrar a cara aqui. Desistir e
pedir transferência para a crônica policial. É preciso ter estômago. Você tem
estômago?
- Tenho. Ele gritou:
- Dalva!
Uma mulher aproximou-se da mesa. Tinha a cara de quem já viu tudo na vida
e gostou de muito pouco. O editor perguntou:
- Você já pegou o Rudi?
- Estou indo agora.
- Leve ela.
Dalva olhou para Sandra como se tivesse acabado de tira-la do nariz. Voltou
a olhar para o editor.
- Não sei, chefe. O Rudi...
- Quero ver do que ela é feita.
- Está bem.
Antes de saírem, Dalva perguntou para Sandra:
- Que equipamento você usa?
Sandra mostrou o que tinha dentro da bolsa. Dalva mostrou
o seu.
- Certo. Vamos sincronizar gravadores. Testando. Um, dois, três...
As duas aproximaram-se da porta do apartamento de Rudi. Antes de bater na
porta, a veterana avisou:
- Chegue para trás.
De dentro do apartamento veio uma voz assustada.
- Quem é?
- Abra!
A porta entreabriu-se. Rudi espiou para fora. Dalva empurrou a porta ao
mesmo tempo que tirava o gravador da bolsa. Sandra a seguiu para dentro do
apartamento. Rudi
recuou.
- Isto é invasão de privacidade! - gritou.
- Quieto! Prepare-se para falar, Rudi. E lembre-se: tudo que você disser pode
ser usado na edição de domingo.
- Não vou dizer nada.
Dalva forçou-o a sentar. O gravador já estava a milímetros da sua boca.
- Ah, vai - disse Dalva. - Vai dizer tudo. Loção de barba!
- Ahn... "Animal", de Givenchy!
- Cuecas justas ou tipo short?
- Justas.
- De que loja?
- Não tenho uma loja favorita.
- Pense melhor, Rudi.
- Está bem. A "Papoulas".
- Sua cor favorita.
- Verde. Não! Azul!
- Vamos, Rudi. É verde ou é azul?
- Azul, azul!
- Quem você levaria para uma ilha deserta?
- Não sei. Me deixem pensar.
- "Pensar'", Rudi? "Pensar"?! Você acha que está respondendo para o
suplemento cultural? Vamos, quem você levaria para uma ilha deserta?
Dalva registrou com surpresa que Sandrinha é que fizera a pergunta
Rudi respondeu.
- A minha mãe. Não. A Malu Mader.
- Qual delas?
- Não pode ser as duas?
- Você sabe que não, Rudi. Estamos perdendo tempo. Quem? - A Malu
Mader.
- Pasta de dente.
- Crest.
- Seu livro de cabeceira.
- Kalil Gibran.
- Maior emoção.
- Foi, foi... Quando minha cadela "Tutsi" teve filhotinhos.
- Prato preferido?
- Não sei. Não sei!
- Sabe sim.
- Picadinho de carne com ovo.
- Sua filosofia.
- Viver e deixar viver.
- Se você não fosse você, quem gostaria de ser?
- 0... o...
- Estamos esperando!
- O Gerald Thomas ou o padre Marcelo Rossi!
- Qual dos dois?
- Fale!
Agora Sandrinha também tinha seu microfone perto da boca de Rudi.
- O padre Marcelo Rossi!
Rudi começou a soluçar. Ás duas se olharam. Dalva permitiu-se um sorriso.
- Você é boa, novata. Acho que vai se dar bem neste trabalho...
- Obrigada.
Mas Sandra não tinha terminado.
- Não pense que acabou ainda, Rudi. Sabonete!


Bobagem

Emocionado e um pouco bêbado, aos cinco minutos do ano novo ele
resolveu telefonar para o velho desafeto.
- Alô?
- Alô. Sou eu.
- Eu quem?
- Eu, pô.
O outro fez silêncio. Depois disse:
- Ah. É você.
- Olha aqui, cara. Eu estou telefonando pra te desejar um feliz ano-novo.
Entendeu?
- Obrigado.
- Obrigado, não. Olha aqui. Sei lá, pô...
- Feliz ano-novo pra você também.
- Eu nem me lembro mais por que nós brigamos. Juro que não me lembro.
- Eu também não lembro.
- Então, grande. Como vai Vivinha?
- Bem, bem. Quer dizer, mais ou menos. As enxaquecas... Ele ficou
engasgado. De repente se deu conta de que tinha saudades até das
enxaquecas da Vivinha. Como podiam ter passado tantos anos sem se ver?
Como tinham deixado uma bobagem afastá-los daquela maneira? As pessoas
precisavam se reaproximar. Aquele seria o seu projeto para o fim do milênio.
Reaproximar-se das pessoas. Só dar importância ao que aproximava. Puxa?
Estava tão enternecido com as enxaquecas da Vivinha que mal podia falar.
- A vida é muito curta. Você está me entendendo? Assim
não dá.
Era como se estivesse reclamando com o fornecedor. A vida vinha com a
carga muito pequena. Era preciso um botijão maior, senão não dava mesmo.
E ainda desperdiçavam vida com bobagem.
Ele quis marcar um encontro para ontem. No Lucas, como antigamente. O
outro foi mais sensato e contrapropôs hoje, prevendo que ontem seria um dia
de ressaca e segundos pensamentos. E tinha razão. Ontem à noite, ele voltou
a telefonar. Falou secamente. Pediu desculpas, disse que não poderia ir ao
encontro e despediu-se com um formal "Melhoras para a Vivinha.
Tinha se lembrado da bobagem que motivara a briga.



Hábito Nacional

Por uma destas coincidências fatais, várias personalidades brasileiras, entre
civis e militares, estão no avião que começa a cair. Não há possibilidade de
se salvarem. O avião se espatifará - e, levando-se em consideração o caráter
dos seus passageiros, "espatifar" é o termo apropriado - no chão.
Nos poucos instantes que lhes restam de vida, todos rezam, confessam seus
pecados, em versões resumidas, e entregam sua alma à providência divina. O
avião se espatifa no chão.
São Pedro os recebe de cara amarrada. O porta-voz do grupo se adianta e, já
esperando o pior, começa a explicar quem são e de onde vêm. São Pedro
interrompe com
um gesto irritado.
- Eu sei, eu sei.
Aponta para uns formulários em cima de sua mesa e diz:
- Recebemos suas confissões e seus pedidos de clemência e entrada no céu.
O porta-voz engole em seco e pergunta:
- E... então?
São Pedro não responde. Olha em torno, examinando a cara dos suplicantes.
Aponta para cada um e pede que se identifiquem pelo crime.
- Torturador.
- Minha financeira estourou.
- Enganei milhares.
- Corrupto. Menti para o povo.
- Sabe a bomba, aquela? Fui o responsável.
- Roubei.
- Me locupletei.
- Matei.
Etcétera. São Pedro sacode a cabeça. Diz:
- Seus requerimentos passaram pela Comissão de Perdão rejeitados por
unanimidade. Passaram pelo Painel de Admissões, mera formalidade, e
foram rejeitados por unanimidade.
Mas como nós, mais que ninguém, temos que ser justos, para dar o exemplo,
examinamos os requerimentos também na Câmara Alta, da qual eu faço
parte. Uma maioria esmagadora votou contra. Houve só um voto a favor.
Infelizmente, era o voto mais importante.
- Você quer dizer...
- É. Ele. Neste caso, anulam-se todos os pareceres em contrário e prevalece a
vontade soberana d'Ele. Isto aqui ainda é o Reino dos Céus.
- E nós podemos entrar?
São Pedro suspira.
- Podem. Se dependesse de mim, iam direto para o Inferno. Mas... Todos
entram pelo Portão do Paraíso, dando risadas e se congratulando. Um
querubim que assistia à cena vem pedir explicações a São Pedro.
- Mas como é que o Todo-Poderoso não castiga essa gente? E São Pedro,
desanimado:
- Sabe como é, Brasileiro...


FALANDO SÉRIO

Pode Acontecer

Pode acontecer o seguinte. As revelações sobre o envolvimento de figuras do
governo passado em crimes e escândalos chegam a ponto crítico. Civis e
militares de graduação inimaginável vêem-se na iminência não de ir para a
cadeia, o que contraria os hábitos brasileiros, mas de serem expostos como
corruptos, torturadores, etc. O que, sei lá, seria chato. Os protestos contra
"revanchismo" não adiantam. É preciso agir para deter a torrente de
denúncias que ameaça destruir, na sua fúria persecutória, tudo o que o regime
passado deixou de bom. Como, por exemplo, o, a... hm. Bem, é preciso agir.
O golpe é decidido num telefonema no meio da noite. Falam em código.
- Alô, Mão em Cumbuca? Boca na Botija.
- Fala, Boca.
- Tudo certo para amanhã?
- Tudo.
- Tem certeza?
- Tenho. Houve resistência, mas o argumento de que até o Antônio Carlos
está nas mãos dos comunistas foi decisivo. A maioria aderiu.
- Quer dizer que...
- Lá vamos nós outra vez.
- Será que não há mesmo outro jeito?
- Bem, se você quer ver nos jornais a história de como você roubava material
do seu gabinete para vender...
- Ssssh!
- Nunca entendi. Você não se contentava com seu salário de...
- Sssshh!
- Tinha que vender os clipes de papel?!
- E você? E você?
- O que que tem eu?
- E o cabaré no porão do
- Ssshhh!
- Bom, agora não adianta ficar lamentando. O importante é que ninguém
descubra. Como está o plano?
- Não pode falhar. Cercaremos o Congresso. Os congressistas se renderão.
Usando os congressistas como reféns, exigiremos a capitulação do governo e
das forças leais a Sarney.
- Uma vez no poder, censuraremos a imprensa. De novo.
- Exato.
- Boa sorte, Mão!
- Certo, Boca.
No dia seguinte.
- Alô, Mão em Cumbuca?
- Não tem ninguém aqui com esse codinome.
- Já vi que não deu certo...
- É.
- O que houve?
- Atacamos o Congresso. Fomos direto ao cerne da democracia. Cercamos o
prédio. Entramos para render os congressistas.
- E?
- E não encontramos ninguém!
- O quê?!
- Bom, para não dizer que não tinha ninguém, tinha uma taquígrafa.
Pensamos em usá-la como refém mas acabamos desistindo.
- Assim não dá!
- É. É impossível golpear as instituições se elas não estão onde deviam estar!
- O que vamos fazer agora, Mão?
- Eu se fosse você dava o fora do país, Boca.
- E de onde você pensa que eu estou falando, Mão?


Direitos Humanos

- Famous Ipanema Beach!
Dentro do ônibus, os turistas exclamavam "oh!" com entusiasmo. Ipanema
Beach! O motorista, Algemiro, torcedor do Vasco, morador do Vidigal,
sacudia a cabeça cada vez que ouvia a pronúncia da guia. Por que "Ipanima"?
Era Ipanema com "e". "Ipanimá' era frescura de gringo.
- Vieira Souto Avenue.
- Aveniu dos bacana - completou Algemiro. E, com um certo orgulho:
- Caminho da minha casa.
- What? - quis saber uma velhinha americana de dentro do seu vestido
gasoso.
- Rich people live here - explicou a guia. Mais "ohs" entusiasmados.
-The girls from Ipanema - disse a guia, apontando as garotas da praia.
- Oh! - gritaram os turistas.
- In front of us, Pedra da Gávea, Gávea Stone - disse a guia.
- Oh! - gritaram os turistas.
- O Budum Filho! - gritou o motorista.
- Oh! - gritaram os turistas, com a freada do ônibus.
- O que foi isso? - quis saber a guia, ajeitando o chapeuzinho. - O Budum
Filho. Um pilantrão que me deve uma nota.
- Mas você não vai parar o ônibus agora para falar com...
- Ah, se não vou! Segura as pontas que eu já volto.
- Espera!
Mas o Algemiro já puxara o freio de mão e se precipitara para a rua atrás do
Budum Filho, filho do Budum Pai, bicheiro e mau-caráter. Os turistas
pularam dos bancos para acompanhar a perseguição. Em minutos o Algemiro
voltava com o Budum Filho pela nuca.
- Por que aqui? - gritou a guia, sem saber o que dizer para as velhinhas.
- Quero ter uma conversa com este pilantra num particular.
- Mas aqui?
- Calminha. É rápido.
O Budum Filho, aterrorizado, apelou para uma americana.
- Rélpi, madame. É seqüestro.
- Rélpi eu vou te mostrar, caloteiro.
- Who is he? - perguntou a americana, mais aterrorizada do que ele,
apontando para o Budum Filho.
- Nothing, nothing - disse a guia. - A boy from Ipanema.
- Oh!
- O que foi que ele fez? - perguntou a guia para o Algemiro.
- Eu ganhei no bicho e ele não pagou. Enrustiu na marra. - Rélpi! - repetiu o
Budum Filho.
Com a revolta dos turistas, o Algemiro se viu constrangido a largar a nuca do
mauca. Mas segurou a sua camiseta. Que tinha o nome de uma universidade
americana na frente. As simpatias dos turistas estavam com o Budum Filho.
- E a minha grana, ó calota!
- Que grana?
- Vem com essa. Vem com essa!
- Ó Algemiro, tá me estranhando? Eu ia pagar.
- Ia, não. Vai.
- Vou.
- Dívida de bicho é sagrada.
- What is it?
- Jogo do bicho. Animal game. Gambling.
- Oh!
Um americano, calça quadriculada, se apresentou para mediar. Aquilo estava
atrasando a excursão. Ele tinha pago bom dinheiro para ver as vistas do Rio.
Não uma briga.
Se bem que as velhinhas, depois do susto inicial, pareciam estar apreciando o
incidente entre os nativos. O que iam ter para contar na volta!
Com a guia como intérprete, o americano propôs que procurassem uma
autoridade para resolver o caso. A proposta foi vetada pelas partes. E,
mesmo, seria difícil encontrar uma autoridade por perto.
- Autoridade neste ônibus - disse o Algemiro, sacudindo o Budum Filho com
ênfase - sou eu.
- Rélpi, mister!
- Come on, let him go - disse o americano.
- Não tem camone.
- Algemiro - suplicou a guia -, vamos primeiro terminar a excursão, depois
você cuida desse assunto.
Algemiro estudou a questão. Depois concordou. O Budum Filho ficaria no
ônibus, sob custódia dos turistas, até o fim da excursão. Depois acertariam as
contas. E tocaram o ônibus.
Budum Filho sentou ao lado de uma velhinha da Minnesota, que lhe ofereceu
um drops de hortelã. Foi fotografado por dezessete polaróides
simultaneamente. Com a ajuda da guia, contou a história da sua vida. O seu
sonho era conhecer os Estados Unidos.
- Lá não entra caloteiro! - gritou o Algemiro, mas foi silenciado pelos
protestos gerais.
Ninguém olhava mais a paisagem. Todas as atenções estavam no Budum
Filho. Ele era um artista. As madames queriam ouvir um samba da sua
autoria? Claro que queriam.
Budum cantou um samba do Martinho da Vila. O Algemiro tentou
desmascara-lo mas foi desprezado. Quando o Budum Filho acabou de cantar,
todos gritaram "oh!" e aplaudiram
muito. No fim da excursão alguns deram gorjetas para o Budum Filho (e
nada para o Algemiro). A guia recomendou ao Algemiro que não fizesse
nenhuma loucura. A companhia podia ficar sabendo e os dois se dariam mal.
O Algemiro disse que só ia ter uma conversínha com o desgraçado. E ficou
sozinho no ônibus com o Budum Filho.
- Canta um samba agora, garoto.
- Álgemiro, se eu fosse você eu não me tocava.
- Ah, é?
- É.
- E por quê?
- Porque eu passei um bilhete para uma das madame, escondido.
- Que bilhete?
- Para o Clinton.
- Que Clinton?
- O presidente. Se me acontecer qualquer coisa, ele vai ficar sabendo que foi
você. Respeita os meus direitos humanos, senão vai ter.
- Ah, é?
- É.
- Pois quem é o presidente lá é o Bush e sabe o que que o Bush gosta de fazer
com vagabundo?
- Não, Algemiro. Não!


Segurança

O ponto de venda mais forte do condomínio era a sua segurança. Havia as
belas casas, os jardins, os playgrounds, as piscinas, mas havia, acima de tudo,
segurança.
Toda a área era cercada por um muro alto. Havia um portão principal com
muitos guardas que controlavam tudo por um circuito fechado de TV Só
entravam no condomínio
os proprietários e visitantes devidamente identificados e crachados.
Mas os assaltos começaram assim mesmo. Ladrões pulavam os muros e
assaltavam as casas.
Os condôminos decidiram colocar torres com guardas ao longo do muro alto.
Nos quatro lados. As inspeções tornaram-se mais rigorosas no portão de
entrada. Agora não só os visitantes eram obrigados a usar crachá. Os
proprietários e seus familiares também. Não passava ninguém pelo portão
sem se identificar para a guarda. Nem as babás. Nem os bebês.
Mas os assaltos continuaram.
Decidiram eletrificar os muros. Houve protestos, mas no fim todos
concordaram. O mais importante era a segurança. Quem tocasse no fio de
alta tensão em cima do muro morreria eletrocutado. Se não morresse, atrairia
para o local um batalhão de guardas com ordens de atirar para matar.
Mas os assaltos continuaram.
Grades nas janelas de todas as casas. Era o jeito. Mesmo se os ladrões
ultrapassassem os altos muros, e o fio de alta tensão, e as patrulhas, e os
cachorros, e a segunda cerca, de arame farpado, erguida dentro do perímetro,
não conseguiriam entrar nas casas. Todas as janelas foram engradadas.
Mas os assaltos continuaram.
Foi feito um apelo para que as pessoas saíssem de casa o mínimo possível.
Dois assaltantes tinham entrado no condomínio no banco de trás do carro de
um proprietário, com um revólver apontado para a sua nuca. Assaltaram a
casa, depois saíram no carro roubado, com crachás roubados. Além do
controle das entradas, passou a ser feito um rigoroso controle das saídas.
Para sair, só com um exame demorado do crachá e com autorização expressa
da guarda, que não queria conversa nem aceitava suborno.
Mas os assaltos continuaram.
Foi reforçada a guarda. Construíram uma terceira cerca. As famílias de mais
posses, com mais coisas para serem roubadas, mudaramse para uma chamada
área de segurança máxima. E foi tomada uma medida extrema. Ninguém
pode entrar no condomínio. Ninguém. Visitas, só num local predeterminado
pela guarda, sob sua severa vigilância e por curtos períodos.
E ninguém pode sair.
Agora, a segurança é completa. Não tem havido mais assaltos. Ninguém
precisa temer pelo seu patrimônio. Os ladrões que passam pela calçada só
conseguem espiar através do grande portão de ferro e talvez avistar um ou
outro condômino agarrado às grades da sua casa, olhando melancolicamente
para a rua.
Mas surgiu outro problema.
As tentativas de fuga. E há motins constantes de condôminos que tentam de
qualquer maneira atingir a liberdade.
A guarda tem sido obrigada a agir com energia.


FALANDO SÉRIO

Fobias

As pessoas que defendem o pastoral e a volta ao primitivo nunca se lembram,
nas suas rapsódias à vida rústica, dos insetos. Sempre que ouço alguém
descrever, extasiado, as delícias de um acampamento - ah, dormir no chão,
fazer fogo com gravetos e ir ao banheiro atrás do arbusto - me espanto um
pouco mais com a variedade humana.
Somos todos da mesma espécie, mas o que encanta uns horroriza outros. Sou
dos horrorizados com a privação deliberada. Muitas gerações contribuíram
com seu sacrifício e seu engenho para que eu não precisasse fazer mais nada
atrás do arbusto. Me sentiria um ingrato fazendo. E a verdade é que, mesmo
para quem não tem os meus preconceitos, as delícias do primitivo nunca são
exatamente como as descrevem. Aquela legendária casa à beira de uma praia
escondida onde a civilização ainda não chegou, ou chegou mas foi corrida
pelo vento, e onde tudo é bom e puro, não existe. E se existe, nunca é bem
assim.
- Um paraíso! Não há nem um armazém por perto.
Quer dizer, não há acesso à aspirina, fósforos ou qualquer tipo de leitura
salvo, talvez, metade de uma revista Cigarra de 1948, deixada pelos últimos
ocupantes da casa quando foram carregados pelos mosquitos.
- A gente dorme ouvindo o barulho do mar...
E de animais terrestres e anfíbios tentando entrar na casa para morder o seu
pé. E, se morder, você morre. O antibiótico mais próximo fica a 100
quilômetros e está com a data vencida.
Não. Fico na cidade. A máxima concessão que faço à vida natural, no verão,
são as bermudas. E, assim mesmo, longas. Muito curtas e já é um começo de
volta à selva.
Não sei como se chamaria o medo de não ter o que ler. Existem as
conhecidas claustrofobia (medo de lugares fechados), agorafobia (medo de
espaços abertos), acrofobia (medo de altura), collorfobia (medo do que ele
vai nos aprontar agora) e as menos conhecidas ailurofobia (medo de gatos),
iatrofobia (medo de médicos) e até treiskaidekafobia (medo do número
treze), mas o pânpco de estar, por exemplo, num quarto de hotel, com
insônia, sem nada para ler não sei que nome tem. É uma das minhas
neuroses.
O vício que lhe dá origem e a gutembergomania, uma dependência
patológica na palavra impressa. Na falta dela, qualquer palavra serve. Já saí
de cama de hotel no meio da noite e entrei no banheiro para ver se as
torneiras tinham "Frio" e "Quente" escritos por extenso, para saciar minha
sede de letras. Já ajeitei o travesseiro, ajustei a luz e abri a lista telefônica,
tentando me convencer que, pelo menos no número de personagens, seria um
razoável substituto para um romance russo. Já revirei cobertores e lençóis, à
procura de uma etiqueta, qualquer coisa.
Alguns hotéis brasileiros imitam os americanos e deixam uma Bíblia no
quarto, e ela tem sido a minha salvação, embora não no modo pretendido.
Nada como um best-seller numa hora dessas. A Bíblia tem tudo para
acompanhar uma insônia: enredo fantástico, grandes personagens, romance,
o sexo em todas as suas formas, ação, paixão, violência - e uma mensagem
positiva. Recomendo "Gênesis" pelo ímpeto narrativo, "O cântico dos
cânticos" pela poesia e "Isafas" e "João" pela força dramática, mesmo que
seja difícil dormir depois do Apocalipse.
Mas, e quando não tem nem a Bíblia? Uma vez liguei para a telefonista de
madrugada e pedi uma Amiga.
- Desculpe, cavalheiro, mas o hotel não fornece companhia feminina...
- Você não entendeu! Eu quero uma revista Amiga. Capricho, Vida
Rotariana, qualquer coisa.
- Infelizmente, não tenho nenhuma revista.
- Não é possível! O que você faz durante a noite? - Tricô.
Uma esperança!
- Com manual?
- Não.
Danação.
- Você não tem nada para ler? Na bolsa, sei lá.
- Bem... Tem uma carta da mamãe.
- Manda!


Anedotas

Um dos mistérios da vida é: de onde vêm as anedotas? O enigma da criação
da anedota se compara ao enigma da criação da matéria. Em todas as teorias
conhecidas sobre a evolução do universo sempre se chega a um ponto em
que a única explicação possível é a da geração espontânea. Do nada surge
alguma coisa. As anedotas também nasceriam assim, já prontas,
aparentemente autogeradas. Você não conhece ninguém que tenha inventado
uma anedota. Ou, pelo menos, uma boa anedota. Os que contam uma anedota
sempre a ouviram de outro, que ouviu de outro, que ouviu de outro, que não
se lembra onde a ouviu. Se anedota fosse crime, sua repressão seria
dificílima. Prenderiam os viciados e os traficantes, a arraia-miúda, mas
jamais chegariam ao capo, ao distribuidor, ao verdadeiro culpado.
- Prendemos o Joca ("Sabem a última?") da Silva. Ele estava passando uma
anedota e...
- Imbecis! Não era para prender.
- Mas, delegado. Ele estava de posse de dezenas de anedotas de primeira
qualidade. Algumas novíssimas...
- Era para segui-lo e descobrir seu fornecedor. Mais uma pista perdida...
Os humoristas profissionais não fazem anedotas. Inventam piadas, frases,
cenas, histórias, mas as anedotas que correm o país não são deles. São de
autores desconhecidos mas nem por isto menos competentes. Uma anedota
geralmente tem o rigor formal de um teorema. Exposição, desenvolvimento,
desenlace. Claro que variam de acordo com quem conta. Grande parte do
sucesso de uma anedota depende do estilo de quem conta. A anedota é uma
continuação da tradição homérica, de narrativa oral, que transmitia histórias
antes do livro. Anedota impressa deixa de ser anedota. Existem contadores
eméritos. E casos pungentes de grandes contadores que, com o tempo, vão
perdendo a habilidade, até chegarem ao supremo vexame de, um dia,
esquecerem o fim da anedota.
- Aí o anãozinho pega o desentupidor de pia e...
- Sim?
- E... e... Como é mesmo? Já me vem...
- Não!
Pior do que isto é o contrário. O contador decadente que passa a só se
lembrar do fim das anedotas.
- Como é mesmo aquela? Termina com o homem dizendo pro índio "fica
com o escalpo mas me devolve a peruca". Puxa...
Há quem diga que todas as anedotas são variações sobre dez situações
básicas, que existem há séculos. Deus, depois de dar a Moisés a tábua com os
Dez Mandamentos, o teria chamado de volta e dito:
- E esta e a das anedotas...
Seja como for, a anedota é a grande manifestação da inventividade popular,
da inteligência clandestina que mantém vivo o espírito crítico, mesmo
quando tentam reprimi-lo.
Quem quiser saber o que pensavam os brasileiros dos seus líderes desde o
primeiro Pedro deve procurar nas anedotas, não na história oficial. Contam
que na Rússia, certa vez, Stalin decidiu formar um ministério da anedota,
para substituir as anedotas que o povo andava espalhando por sua conta.
Vários ministros tentaram mas não conseguiram produzir anedotas que
agradassem ao povo, e foram mandados para a Sibéria. Até que um ministro
acertou e fez uma série de anedotas, todas contra Stalin, que tiveram grande
aceitação popular. O ministro foi condecorado e escapou de ser mandado
para a Sibéria por ter fracassado. Foi mandado para a Sibéria por fazer
anedotas sobre o Stalin. E o ministério acabou logo, por falta de pessoal
capacitado.
Dizem que, eventualmente, um computador bem programado poderá
escrever teses e romances. Mas duvido que algum computador, algum dia,
possa fazer uma anedota. As instruções seriam claras. Local: uma cela de
prisão no Brasil. Personagens: os responsáveis pelos escândalos das
privatizações, do Sivam, do Proer, do Daer e da Caixa Dois reunidos. Tarefa:
criar uma história curta, com final surpreendente, que faça rir. O computador
provavelmente responderia:
- Tarefa impossível. Situação improvável.


Da Timidez

Ser um tímido notório é uma contradição. O tímido tem horror a ser notado,
quanto mais a ser notório. Se ficou notório por ser tímido, então tem que se
explicar.
Afinal, que retumbante timidez é essa, que atrai tanta atenção? Se ficou
notório apesar de ser tímido, talvez estivesse se enganando junto com os
outros e sua timidez seja apenas um estratagema para ser notado. Tão secreto
que nem ele sabe. É como no paradoxo psicanalítico: só alguém que se acha
muito superior procura o analista para tratar um complexo de inferioridade,
porque só ele acha que se sentir inferior é doença.
Todo mundo é tímido, os que parecem mais tímidos são apenas os mais
salientes. Defendo a tese de que ninguém é mais tímido do que o
extrovertido. O extrovertido faz questão de chamar atenção para sua
extroversão, assim ninguém descobre sua timidez. Já no notoriamente tímido
a timidez que usa para disfarçar sua extroversão tem o tamanho de um carro
alegórico. Daqueles que sempre quebram na concentração. Segundo minha
tese, dentro de cada Elke Maravilha existe um tímido tentando se esconder e
dentro de cada tímido existe um exibido gritando "Não me olhem! Não me
olhem!", só para chamar a atenção.
O tímido nunca tem a menor dúvida de que, quando entra numa sala, todas as
atenções se voltam para ele e para sua timidez espetacular. Se cochicham, é
sobre ele.
Se riem, é dele. Mentalmente, o tímido nunca entra num lugar. Explode no
lugar, mesmo que chegue com a maciez estudada de uma noviça. Para o
tímido, não apenas todo mundo mas o próprio destino não pensa em outra
coisa a não ser nele e no que pode fazer para embaraçá-lo.
O tímido vive acossado pela catástrofe possível. Vai tropeçar e cair e levar
junto a anfitriã. Vai ser acusado do que não fez, vai descobrir que estava com
a braguilha aberta o tempo todo. E tem certeza de que cedo ou tarde vai
acontecer o que o tímido mais teme, o que tira o seu sono e apavora os seus
dias: alguém vai lhe passar a palavra.
O tímido tenta se convencer de que só tem problemas com multidões, mas
isto não é vantagem. Para o tímido, duas pessoas são uma multidão. Quando
não consegue escapar e se vê diante de uma platéia, o tímido não pensa nos
membros da platéia como indivíduos. Multiplica-os por quatro, pois cada
indivíduo tem dois olhos e dois ouvidos.
Quatro vias, portanto, para receber suas gafes. Não adianta pedir para a
platéia fechar os olhos, ou tapar um olho e um ouvido para cortar o
desconforto do tímido pela metade. Nada adianta. O tímido, em suma, é uma
pessoa convencida de que é o centro do Universo, e que seu vexame ainda
será lembrado quando as estrelas virarem pó.


ABC

Quando a gente aprende a ler, as letras, nos livros, são grandes. Nas cartilhas
- pelo menos nas cartilhas do meu tempo - as letras eram enormes. Lá estava
o A, como uma grande tenda. O B, com seu grande busto e sua barriga ainda
maior. O C, sempre pronto a morder a letra seguinte com a sua grande boca.
O D, com seu ar próspero de grão-senhor. Etc. Até o Z, que sempre me
parecia estar olhando para trás. Talvez porque não se convencesse que era a
última letra do alfabeto e quisesse certificar-se de que atrás não vinha mais
nenhuma.
As letras eram grandes, claro, para que decorássemos a sua forma. Mas não
precisavam ser tão grandes. Que eu me lembre, minha visão na época era
perfeita. Nunca mais foi tão boa. E no entanto os livros infantis eram
impressos com letras graúdas e entrelinhas generosas. E as palavras eram
curtas. Para não cansar a vista.
À medida que a gente ia crescendo, as letras iam diminuindo. E as palavras,
aumentando. Quando não se tem mais uma visão de criança é que se começa,
por exemplo, a ler jornal, com seus tipos miúdos e linhas apertadas que
requerem uma visão de criança. Na época em que começamos a prestar
atenção em coisas como notas de pé de página, bulas de remédio e
subcláusulas de contrato, já não temos mais metade da visão perfeita que
tínhamos na infância, e esbanjávamos nas bolas da Lulu e no corre-corre do
Faísca.
Chegamos à idade de ler grossos volumes em corpo 6 quando só temos olhos
para as letras gigantescas, coloridas e cercadas de muito branco, dos livros
infantis. Quanto mais cansada a vista, mais exigem dela. Alguns recorrem à
lente de aumento para seccionar as grandes palavras em manejáveis
monossílabos infantis. E para restituir às letras a sua individualidade
soberana, como tinham na infância.
O E, que sempre parecia querer distância das outras.
O R! Todas as letras tinham pé, mas o R era o único que chutava. O V, que
aparecia em várias formas: refletido na água (o X), de muletas (o M), com o
irmão siamês(o W).
O Q, que era um O com a língua de fora.
De tanto ler palavras, nunca mais reparamos nas letras. E de tanto ler frases,
nunca mais notamos as palavras, com todo o seu mistério. Por exemplo: pode
haver palavra mais estranha do que "esdruxulo"? É uma palavra, sei lá.
Esdrúxula. Ainda bem que nunca aparecia nas leituras da infância, senão
teria nos desanimado. Eu me recusaria a aprender uma língua, se soubesse
que ela continha a palavra "esdrúxulo". Teria fechado a cartilha e ido jogar
bola, para sempre. As cartilhas, com sua alegre simplicidade, serviam para
dissimular os terrores que a língua nos reservava. Como "esdrúxulo". Para
não falar em "autóctone". Ou, meu Deus, em "seborréia'!
Na verdade, acho que as crianças deviam aprender a ler nos livros do Hegel e
em longos tratados de metafísica. Só elas têm a visão adequada à densidade
do texto, o gosto pela abstração e tempo disponível para lidar com o infinito.
E na velhice, com a sabedoria acumulada numa vida de leituras, com as letras
ficando progressivamente maiores à medida que nossos olhos se cansavam,
estaríamos então prontos para enfrentar o conceito básico de que vovô vê a
uva, e viva o vovô.
Vovô vê a uva! Toda a nossa inquietação, nossa perplexidade e nossa busca
terminariam na resolução deste enigma primordial. Vovô. A uva. Eva. A
visão.
Nosso último livro seria a cartilha. E a nossa última aventura intelectual, a
contemplação enternecida da letra A. Ah, o A, com suas grandes pernas
abertas.


EXERCÍCIOS DE ESTILO

Amor

Poema Mais Ou Menos De Amor:
Eu queria, senhora,
ser o seu armário
e guardar seus tesouros
como um corsário.
Que coisa louca:
ser seu guarda-roupa!
Alguma coisa sólida,
circunspecta e pesada
nessa sua vida tão estabanada.
Um amigo de lei
(de que madeira eu não sei).
Um sentinela do seu leito
- com todo o respeito.
Ah, ter gavetinhas
para suas argolinhas.
Ter um vão
para o seu camisolão
e sentir o seu cheiro,
senhora,
o dia inteiro.
Meus nichos
como bichos
engoliriam suas meias-calças,
seus sutiãs sem alças.
E tirariam nacos
dos seus casacos.
Ah, ter no colo,
como gatos,
os seus sapatos.
E no meu chão,
como trufas,
suas pantufas...
Seus echarpes, seus jeans,
seus longos e afins.
Seus trastes
e contrastes.
Aquele vestido com asa
e aquele de andar em casa.
Um turbante antigo.
Um pulôver amigo.
Bonecas de pano.
Um brinco cigano.
Um chapéu de aba larga.
Um isqueiro sem carga.
Suéteres de lã
e um estranho astracã.
Ah, vê-Ia se vendo
no meu espelho, correndo.
Puxando, sem dores,
os meus puxadores.
Mexendo com o meu interior
- à procura de um pregador.
Desarrumando o meu ser
por um prêt-à porter...
Ser o seu segréto,
senhora,
e o seu medo.
E sufocar,
com agravantes,
todos os seus amantes.


Um, Dois, Três

Eu queria um dia fazer uma crônica como uma valsa antiga. Que rodopiasse
pela página como, digamos, um velho comendador de fraque e a sua jovem
amiga. Cheia de rimas
como quimera e primavera. Com passos e compassos, ah quem me dera.
Talco nos decotes, virgens suspirosas e uma sugestão de intriga.
Os parágrafos seriam verso e figurações. No meio um lustre, na tuba um
gordo e em cada peito mil palpitações. Os namorados trocariam olhares. As
tias e os envergonhados nos seus lugares. E de repente uma frase perderia o
fio, soltando sílabas por todos os salões.
A segunda parte me daria um nó.
Os pares param, o maestro espera e ninguém tem dó.
Dou ré, vou lá, já não caibo em mi.
E então decreto - vá fá - é cada um por si!
Um, dois, três.
Um, dois, três.
A minha orquestra seria toda de professores. Um de desenho, três de latim,
cinco de português e todos amadores. O baterista cheiraria coca. O
contrabaixista não parece o Loca? E o gordo da tuba um duque da Bavária
nos seus últimos estertores.
Um cadete rouba o amor da filha de um magnata. Pescoço de alabastro, boca
de rubi e os olhos de uma gata. O namorado, despeitado, urde sua vingança.
É quase meia-noite e segue a contradança. O pai da moça dorme nos seus
sete queixos e sonha com uma negociata.
No avarandado branco, onde vão ver a Lua
A moça e o cadete, que a imagina nua,
Beíjam-se perdidamente a três por quatro.
E o segundo traído sou eu, que não encontro rima para "quatro".
Um, dois, três.
Um, dois, três.
Um violinista, de improviso, olha o relógio e perde um bemol. poucas linhas
para acabar meu espaço e surgir o sol. Lá fora, o par apaixonado. De tanto
amor nem olha para o lado. Não vê o despeitado que se aproxima, quieto e
encurvado como um caracol.
Eu mesmo me concedi esta valsa e, portanto, tenho a decisão. Que arma
usará o traído na sua vil ação? Uma adaga, fina e reluzente? Combina mais
com o requintado ambiente. Mas se errar o passo e o alvo o vilão e, abrindo
um filão, conspurcar o alvo chão?
Um tiro na nuca é mais ligeiro
Mais prático, moderno e certeiro.
Mas, meu Deus, o que é que eu estou fazendo?
Comecei com uma singela valsa e já tem gente morrendo! Um, dois, três.
Um, dois, três.
Eu só queria fazer uma crônica como uma valsa antiga. Que rodopiasse pela
página como um comendador cansado e sua compreensiva amiga. Cheia de
rimas sem compromisso aparente. Nem com couro, nem com prata, nem com
a crise do Ocidente. Decotes bocejando. Virgens sonolentas e nem uma
sugestão de briga.
Um, dois, três.
Etc.


O Ator

O homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os dois
filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para
jantar e dirige-se para o seu quarto. Vai tomar um banho, trocar de roupa e
preparar-se para algumas horas de sossego na frente da televisão antes de
dormir. Quando está abrindo a porta do seu quarto, ouve uma voz que grita:
- Corta!
O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é uma casa, é
um cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta das suas mãos. Uma mulher
vem ver se a sua maquilagem está bem e põe um pouco de pó no seu nariz.
Aproxima-se um homem com um script na mão dizendo que ele errou uma
das falas na hora de beijar as crianças.
- O que é isso? - pergunta o homem. - Quem são vocês? O que estão fazendo
dentro da minha casa? Que luzes são essas?
- O que, enlouqueceu? - pergunta o diretor. - Vamos ter que repetir a cena.
Eu sei que você está cansado, mas...
- Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar meu pijama.
Saiam da minha casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos! Saiam!
O diretor fica parado de boca aberta. Toda a equipe fica em silêncio, olhando
para o ator. Finalmente o diretor levanta a mão e diz:
- Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um pouquinho e...
- Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha... A minha
família! O que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Os meus filhos!
O homem sai correndo entre os fios e os refletores, à procura da família. O
diretor e um assistente tentam segurá-lo. E então ouve-se uma voz que grita:
- Corta!
Aproxima-se outro homem com um script na mão descobre que o cenário, na
verdade, é um cenário. O homem com um script na mão diz:
- Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente.
- Que-quem é você?
- Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem
que transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega em casa e
descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no
meio de um filme. Não entende nada.
- Eu não entendo...
- Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não.
- Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde está minha
mulher? Os meus filhos? A minha casa?
- Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar. Volte para a sua
marca. Atenção, luzes...
- Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou eu! Ninguém me
dirige. Eu estou na minha própria casa, dizendo as minhas próprias falas...
- Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está bom.
- Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é um
filme. E mais, se é um filme,
é uma porcaria de filme. Isto é simbolismo,ultrapassado. Essa de que o
mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que
atores... Porcaria!
- Boa, boa. Está convincente. Mas espere começar a filmar. Atenção...
O homem agarra o diretor pela frente da camisa.
- Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha casa.
O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouvese uma voz que
grita:
- Corta!


O Recital

Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente
formal - digamos, um recital de quarteto de cordas - e depois começar a
desfia-la, como um pulôver velho. Então, vejamos. Um recital de quarteto de
cordas.
O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta platéia. São três
homens e uma mulher. A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um
longo vestido preto. Os três homens estão de fraque. Tomam os seus lugares
atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a
viola e o violoncelo.
Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande
bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.
Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa
nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da
platéia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto.
Estão todos prontos, o violinista coloca o instrumento sob o queixo e
posiciona seu arco. Vai começar o recital.
Nisso...
Nisso, o quê? Qual é a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de
um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás
deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da platéia pula das suas
poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e
perplexa mas depois tudo volta ao normal.
O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu - são
profissionais e mesmo aquilo não pode estar acontecendo -, começa a tocar.
Nenhuma explicação é pedida ou oferecida. Segue o Mozart.
Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão,
uma pequena incongruência. Algo que crie apenas um mal estar, de início, e
chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que pousa na
cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra
no palco um homem carregando uma tuba. Há um murmúrio na platéia. O
que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado
do violoncelista. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que
subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre
fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a
tensão no ar é como a corda de um violino esticada ao máximo, o primeiro
violinista fala:
- Por favor...
- O quê? - diz o homem da tuba, já na defensiva. - Vai dizer que eu não posso
ficar aqui?
- O que o senhor quer?
- Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho. Alguns risos na
platéia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para
trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se
quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:
- Retire-se, por favor.
- Por quê? Quero tocar também.
O primeiro violinista olha nervosamente para a platéia. Nunca em toda a sua
carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Uma vez
um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi. Mas
nunca uma tuba.
- Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart.
Não tem nenhuma parte para a tuba.
- Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o UM-Pá-Pá.
Mais risos da platéia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele
homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões
veste uma camisa do Vasco.
Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal. O violinista ameaça chamar
alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba à força. Mas ele
aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e começa:
- Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!
A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.
- Está bem - diz o primeiro violinista. - Vamos conversar. Você, obviamente,
entrou no lugar errado. Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando
para tocar
Mozart. Mozart não tem um pá pá.
- Mozart não sabe o que está perdendo - diz o tocador de tuba, rindo para a
platéia e tentando conquistar a sua simpatia.
Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Tornase
ameaçador:
- Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no
século XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mozart. Vou
confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados.
Um a um, pá-pá. Torna-se suplicante:
- Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde.
Não pude estudar instrumento de corda. Eu mesmo fiz esta tuba, de um
Volkswagen velho. Deixa...
Num tom sedutor, para a violista:
- Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação
lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto antisséptico, é em mim
que você pensa.
Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por mim num
alegro assai, confessa... Finalmente, desafiador, para o violoncelista.
- Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode
que eu usava em 1968. Devolve!
O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do
quarteto entram na briga. A platéia agora grita e pula. É o caos!
Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve
início com o iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou,
ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga e
que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o
tocador de tuba pára de morder a perna do segundo violinista, abre os braços
e grita: "Mamãe!".
Nisso, entra no palco uma manada de zebus.


Siglas

- Bota aí: "P"
- “P”
- De "Partido".
- Ah.
- Nossa proposta qual é? De união, certo? Acho que a palavra "União" deve
constar do nome.
- Certo. Partido de União...
- Mobilizadora!
- Boa! Dá a idéia de ação, de congraçamento dinâmico. Partido da União
Mobilizadora. Como é que fica a sigla?
- PUM.
- Não sei não...
- É. Vamos tentar outro. Deixa ver. "P"...
- "P" é tranqüilo.
- Acho que "Social" tem que constar.
- Claro. Partido Social...
- Trabalhista?
- Fica PST Não dá.
- É. Iam acabar nos chamando de "Ei, você".
- E mesmo "trabalhista', não sei. Alguém aqui é trabalhista?
- Isso é o de menos. Vamos ver. "P"...
- Quem sabe a gente esquece o "P"?
- É. O "P" atrapalha. Bota "A", de Aliança. Aliança Inovadora...
- AI.
- Que foi?
- Não. A sigla. Fica AI.
- Espera. Eu ainda não terminei. Aliança Inovadora... de Arregimentação
Institucional.
- AIAI... Sei não.
- É. Pode ser mal interpretado.
- Vanguarda Conservadora?
- Você enlouqueceu? Fica VC.
- Aliança Republicana de Renovação do Estado.
- ARRE!
- O quê?
- Calma.
- Espera aí pessoal. Quem sabe a gente define a posição ideológica do partido
antes de pensar na sigla? Qual é, exatamente, a nossa posição?
- Bom, eu diria que estamos entre a centro-esquerda e a centro-direita.
- Então é no centro.
- Também não vamos ser radicais...
- Nós somos a favor da reforma agrária?
- Somos, desde que não toquem na terra.
- Aceitaremos qualquer coalizão partidária para impedir a propagação do
comunismo no Brasil.
- Inclusive com o PCB e o PC do B?
- Claro.
- Não devemos ter medo de acordos e alianças. Afinal, um partido faz pactos
políticos por uma razão mais alta.
- Exato. A de chegar ao poder e esquecer os pactos que fez.
- Partido Ecumênico Republicano Unido.
- PERU?
- Movimento Institucionalista Alerta e Unido.
- MIAU?!
- Que tal KIM? - O que significa?
- Nada, eu só acho o nome bonito.
- MUMU. Movimento Ufanista Mobilização e - MMM... Movimento
Moderador Monarquista.
- Mas nós somos republicanos.
- Eu sei. Mas por uma boa sigla a gente muda.
- TCHAU.
- Hum, boa. Trabalho e Capital em Harmonia com Amor e
União?
- Não, é tchau mesmo.
- Aonde é que você vai?
- Abrir uma dissidência.

EQUÍVOCOS
A Espada
O Marajá
O Homem Trocado
Suflê de Chuchu
Sozinhos
A Foto

OUTROS TEMPOS
A Bola
História Estranha
Vivendo e...
Adolescência - Rosquinha

DE OLHO NA LINGUAGEM
Sexa
Pá, Pá, Pá
Defenestração
Timtim
Papos
O Jargão
Pudor
Palavreado

FÁBULAS
A Novata
Bobagem
Hábito Nacional

FALANDO SÉRIO
Pode Acontecer
Direitos Humanos
Segurança
Fobias
Anedotas
Da Timidez
ABC

EXERCÍCIOS DE ESTILO
Amor
Um, Dois, Três
O Ator
O Recital
Siglas
Rápido

Acho que era o Marcel Marceau que tinha uma pantomima em que ele
representava a vida de um homem, do berço ao túmulo, em menos de um
minuto. Shakespeare, claro, tem seu famoso solilóquio sobre as idades do
homem que também e uma maravilha de sintetização poética. Nossas vidas,
afinal, comparadas com a idade do Universo, se desenrolam em poucos
segundos. Cabem numa página de diálogo.
- Quer dançar?
- Obrigada.
- Você vem aqui sempre?
- Venho.
- Vamos namorar firme?
- Bom... Você tem que falar com o papai...
- Já falei com seu pai. Agora é só marcar a data.
- 26 de julho?
- Certo.
- Não esqueça as alianças...
- Você me ama?
- Amo.
- Mesmo?
- Sim.
- Sim.
- Parece mentira. Estamos casados. Tudo está acontecendo tão rápido...
- Sabe o que foi que disse o noivo nervoso na noite de núpcias?
- O quê?
- Enfim, S.O.S.
- Você estava nervoso?
- Não. Foi bom?
- Mmmm. Sabe de uma coisa?
- O quê?
- Eu estou grávida.
- É um menino!
- A sua cara...
- Aonde é que você vai?
- Ele está chorando.
- Deixa... Vem cá.
- Meu bem...
- Hmm?
- Estou grávida de novo.
- É menina!
- O que é que você tem?
- Por quê?
- Parece distante, frio...
- Problemas no trabalho.
- Você tem outra!
- Que bobagem.
- É mesmo... Você me perdoa?
- Vem cá.
- Aqui não. Olha as crianças...
- O Júnior saiu com o carro. Ia pegar uma garota.
- Você já falou com ele sobre...
- Já. Ele sabe exatamente o que fazer.
- O quê? Você deu instruções?
- Na verdade ele já sabia melhor do que eu. Essa geração já nasce sabendo.
Só precisei mostrar como se usa o macaco.
- O quê?!
- Ah, você quer dizer... Pensei que fosse o carro. E a Beti?
- Parece que é sério.
- Ela e o analista de sistemas?
- É. Aliás...
- Estão vivendo juntos. Eu sabia!
- Ela está indo para o hospital.
- Já?!
- São gêmeos!
- Sabe que você até que é uma avó bacana?
- Quem diria...
- Vem cá.
- Olha as crianças.
- Que crianças?
- Os gêmeos. A Beti deixou eles dormindo aqui.
- Ai.
- Que foi?
- Uma pontada no peito.
- Você tem que se cuidar. Está na idade perigosa.
- Já?!
- Sabe que a Beti está grávida de novo?
- Devem ser gêmeos outra vez. O cara trabalha com o sistema binário.
- Esse conjunto do Júnior precisa ensaiar aqui em casa? Que inferno.
- E o nome do conjunto? Terror e Êxtase.
- Vão acordar os gêmeos.
- Ai.
- Outra pontada?
- Deixa pra lá. Olha, essa música até que eu gosto. Não é rock-balada?
- Não. Eles estão afinando os instrumentos.
- Quer dançar?
- Não! Você sabe o que aconteceu da última vez.


O Classificado Através da História

SÍTIO -Vendo. Barbada. Ótima localização. Água à vontade. Árvores
frutíferas. Caça abundante. Um paraíso. Antigos ocupantes despejados por
questões morais. Ideal
para casal de mais idade. Negócio de Pai para filhos. Tratar com Deus.
CRUZEIRO - Procuram-se casais para um cruzeiro de 40 dias e 40 noites.
Ótima oportunidade para fazer novas amizades, compartilhar alegre vida de
bordo e preservar
a espécie. Trazer guarda-chuva. Tratar com Noé.
ELEFANTES - Vendo. Para circo ou zoológico. Usados mas em bom estado.
Já domados e com baixa do exército. Tratar com Aníbal.
CAVALO - Troco por um reino. Tratar com Ricardo III.
CISNE -Troco por qualquer outro animal de porte, mais moço. Deve ser
macho. Tratar com Leda.
LEÃO - Oferece-se para shows, aniversários, quermesses, etc. Fotogênico,
boa voz, experiência em cinema. Tem referências da MGM, para a qual
trabalhou até a aposentadoria compulsória.
ÓRGÃO - Compro qualquer um. À vista. Também a audição, o sistema
linfático, etc. Tratar com Dr. Frankestein, no Castelo.
CABEÇAS - Compro para coleção. Tenho as de João Batista, Maria
Antonieta e todo o bando de Lampião.
COZINHEIRA - Procuro. Para família de fino trato. Deve ter experiências
em banquetes e uma boa mão para venenos. Se falhar, pode dormir no
emprego, para sempre.
Tratar com Lucrecia Borgia.
TÓRRO TUDO - E toco cítara. Tratar com Nero.
BARBADA - Vendo ótima residência por preço de ocasião. Motivo força
maior. 117 qtos., 80 banhs., amplos salões, lustres, tapetes, deps. compls. p/
200 empreg., 50
vagas na estrebaria. Centro de terreno ajardinado. Tratar com Luís XVI, em
Versalhes, antes que seja tarde.
TELEFONE - Pouco usado. Prefixo 1. Tratar com A.G. Bell.
CASAMENTO - Homem só, boa aparência, situação estável. Procura moça
para ser companheira pelo resto da vida dela. Procurar Barba Azul.
CORRESPONDÊNCIA - Quero me corresponder com qualquer pessoa em
qualquer lugar. Escrever para Robinson Crusoé com urgência.
CHICOTE - Correntes, arreios, chapa quente, Cadeirinha de Afrodite,
Cabrito Mecânico, grande seleção de alicates, uma prensa, ferros para
marcação. Vendo tudo com
manual de instrução. Motivo prisão. Tratar com Marquês de Sade.
ASSISTENTE DE PINTOR - Deve ter prática em pintar de costas. Preciso
de assistente porque estou momentaneamente impossibilitado de trabalhar.
Caiu pingo no meu olho.
Procurar Michelangelo, na Capela Sistina.
ENGENHEIRO - Precisa-se, urgente, para substituir elemento demitido
motivo embriagues. Tratar prefeitura de Pisa, Itália.
TRIPULANTES - Preciso para excursão marítima. Jogo tudo nesta
empreitada. Tentaremos provar que se pode chegar à índia viajando para o
Oeste. Se conseguirmos, seremos
famosos. Se não, a história nos esquecerá. Tratar com Cristóvão Colombo.