segunda-feira, 18 de julho de 2011

A CIDADE ILHADA, de MILTON HATOUM

Dois contos do livro
A CIDADE ILHADA
de MILTON HATOUM

Sumário
Varandas da Eva, 7
Uma estrangeira da nossa rua, 15
Uma carta de Bancroft, 23
Um oriental na vastidão, 29
Dois poetas da província, 37
O adeus do comandante, 45
Manaus, Bombaim, Palo Alto, 53
Dois tempos, 61
A casa ilha da, 69
Bárbara no inverno, 77
A ninfa do teatro Amazonas, 89
A natureza ri da cultura, 95
Encontros na península, 103
Dançarinos na última noite, 111
Nota do autor, 121
Agradecimentos, 125

Varandas da Eva

Varandas da Eva: o nome do lugar.
Não era longe do porto, mas naquela época a noção
de distância era outra. O tempo era mais longo, demorado,
ninguém falava em desperdiçar horas ou minutos. Despre-
závamos a velhice, ou a ideia de envelhecer; vivíamos per-
didos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes
paradas no mormaço. Já conhecíamos a noite: festas no
Fast Clube e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da
Booth Une, serenatas para a namorada de um inimigo e
brigas na madrugada, lá na calçada do bar do Sujo, na pra-
ça da Saudade. Às vezes entrávamos pelos fundos do tea-
tro Amazonas e espiávamos atores e cantores nos cama-
rins, exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes
da primeira cena. Mas aquele lugar, Varandas da Eva, ain-
da era um mistério.
Ranulfo, tio Ran, o conhecia.
É um balneário lindo, e cheio de moças lindas, dizia
7

ele. Mas vocês precisam crescer um pouquinho, as mulhe-
res não gostam de fedelhos.
Invejávamos tio Ran, que até se enjoara de tantas noi-
tes dormidas no Varandas. A vida, para ele, dava outros
sinais, descaía para outros caminhos. Enfastiado, sem gra-
ça, o queixo erguido, ele mal sorria, e lá do alto nos olha-
va, repetindo: Cresçam mais um pouco, cambada de fede-
lhos. Aí levo todos vocês ao balneário.
Mínotauro, fortaço e afeito. quis ir antes. Foi barra do
no portão alto, cuspiu na terra, deu meia-volta, quase
marchando para trás. Era um destemido, o corpo granda-
lhão. e um jeito de encarar os outros com olho quente, de
meter medo e intimidar. Mas a voz ainda hesitava: era
aguda e grossa, de periquito rouco, e o rosto de moleque,
assombrado, meio leso.
Gerinélson era mais paciente, rapaz melindroso, sabia
esperar. Já namorava de dar beijos gulosos e acochos. e
nos surpreendia em pleno domingo guiando uma lambre-
ta velha, roubada do irmão. Na garupa, uma moça desco-
nhecida, de outro bairro. Ou estrangeira. A máquina pas-
sava perto da gente, devagar, roncando, rodeando o tronco
de uma árvore. Depois acelerava, sumindo na fumaceira.
Ele sempre gostou de desaparecer, extraviar-se. Gerinél-
son era e não era da nossa turma. Eu o considerava um
dos nossos. Ele, não sei. Tinha uns segredos bem guarda-
dos, era cheio de reticências: não se mostrava, o rapaz.
O Tarso era o mais triste e envergonhado: nunca disse
onde morava. Desconfiávamos que o teto dele era um dos
barracos perto do igarapé de Manaus; um dia se meteu por
ali e sumiu. Raro sair com a gente para um arrasta-pé. Ele
recusava: Com esses sapatos velhos, não dá, mano. Um
cineminha, sim: duas moedas de cada um, e pagávamos o
8

ingresso do Tarso. E lá íamos ao Éden, Guarany ou Poly-
theama. Depois da matinê. ele escapulia. não ficava para
ver as meninas da Escola Normal, nem as endiabradas do
Santa Dorothea. Tarso queria vender picolés e frutas na
rua, queria ganhar um dinheirinho só para entrar no Va-
randas da Eva. Mas era caro, não ia dar. Então tio Ranulfo
prometeu: Quando chegar a hora, pago pra todos vocês.
Tio Ran. homem de palavra, foi generoso: espichou
dinheiro para a entrada e a bebida. Depois tirou um maço
de cédulas da carteira. Disse: Isso é para as mulheres. E
nada de molecagem. Cada um de vocês deve ser um gen-
tleman com aquelas princesas.
Contamos as cédulas: dava e sobrava, era a nossa for-
tuna. Compramos na Casa Colombo um par de sapatos, e
tia Mira costurou uma calça e uma camisa, tudo para o
Tarso. Quando ele experimentou a roupa nova, parecia
outro, ia chorar de alegria, mas Minotauro, maldoso, de-
bochou: Deixa pra chorar depois da farra, rapaz. Quem fi-
ca feliz de roupinha nova é moça.
Eles ficaram cara a cara, os olhos com faíscas de ran-
cor. Tia Mira se intrometeu, com súplicas de trégua e paz.
Os dois olharam para minha tia, os rostos mais serenos, o
pensamento talvez em outras searas.
Marcamos a noitada para uma sexta-feira de setem-
bro. Gerinélson pegou o dinheiro, quis ir sozinho, de lam-
breta. Tio Ran nos levou em seu Dauphine, parou quase
na porta, nos desejou boa noitada. Quando íamos entrar,
Tarso hesitou: deu uns passos para a frente, recuou, quis e
não quis entrar. Ficou mudo, mais e mais esquisito, fe-
chou-se. Nós o desconhecemos: luz e dança não o atraíam?
Minotauro puxou-o pela camisa, enganchou a mão no
pescoço dele, repetindo: Bora lá, seu leso. Nosso amigo
9

abaixou a cabeça, concordando, mas com um salto se des-
garrou, e correu para a escuridão.
Tarso, um desmancha-prazer. Deixamos o nosso ami-
go. A vontade não é de cada um e em cada dia? Minotauro
soltou um grunhido, resmungou: Não disse? Roupinha
nova é mimo pra mocinha.
Entramos. Um caminho estreito e sinuoso conduzia
ao Varandas da Eva. Aos poucos, uma sombra foi crescen-
do, e no fim do caminho uma luminosidade surgiu na flo-
resta. Era uma construção redonda, de madeira e palha,
desenho de oca indígena. Mesinhas na borda do círculo,
um salão no meio, iluminado por lâmpadas vermelhas.
Uns casais dançavam ali, a música era um bolero. Mino-
tauro apontou uma mesinha vazia num canto mais escuro.
Sentamos, pedimos cerveja, um cheiro de açucena vinha
do mato. E Gerinélson, se extraviara? Na luz vermelha,
quase noite, Minotauro me cutucou: uma mulher sorria
para mim. Não vi mais o Minotauro, nem quis saber do
Gerinélson. Só olhava para ela, que me atraía com sorri-
sos; depois ela me chamou com um aceno, girando o indi-
cador, me convidando para dançar. Não era alta, mas tinha
um corpo cheio e recortado, e um rostinho dos mais belos,
com olhos acesos, cor de fogo, de gata maracajá. Dança-
mos três músicas, e dançamos mais outras, parados, aper-
tadinhos, de corpo molhado. Ela percebeu minha ânsia,
me apertou com gosto, e me levou, no ritmo lento da mú-
sica, para fora do salão. Por outro caminho me conduziu a
uma das casinhas vermelhas, avarandadas, na beira de um
igarapé. Ficamos um tempo na varandinha, no namoro de
beijos e pegações. Depois, lá dentro, ela fechou a porta, e
deixou as janelas entreabertas. O som de um bolero mor-
ria na casinha avarandada.
10

Ela me ensinou a fazer tudo, todos os carinhos, sem
pressa, com o saber de mulher que já amou e foi amada.
Passamos a noite nessa festa, sem cochilo, e muitos risos,
de só prazer. Fez coisas que davam ciúme, carícias que não
se esquecem. Perguntei como ela se chamava. Ela disfar-
çou, e disse, rindo: Meu nome? Tu não vais saber, é proi-
bido, pecado. Meu nome é só meu. Prometo.
A voz e a risada bastavam, minha curiosidade dimi-
nuía. Nome e sobrenome não são aparências?
Não quis me ver nem ser vista à luz do dia; quando as
águas do igarapé ficaram mais escuras do que a noite, ela
pediu que eu fosse embora. Obedeci, a contragosto. Saí no
fim da madrugada, caminhando na trilha de folhas úmi-
das. Naquela manhã o sol teimou em aparecer no céu fe-
chado.
Voltei ao Varandas no mesmo dia, a fim de revê-Ia; vol-
tei muitas vezes, sempre sozinho, nunca mais a encontrei.
° Tarso disse que não entrou no Varandas porque te-
ve medo.
Medo?
Ele sério, e calado.
Minotauro me contou sua farra, cheia de façanhas. A
grande gandaia, noite e dia, ele disse com uma voz que
não tremia mais, voz bem grossa, de cachorrão. 0, Gerinél-
son me olhou de soslaio, sorriu de fininho, desconversou.
Ele não se mostrava mesmo. Gostava das coisas só para
ele, guardando tudo na memória, dono sozinho de seus
feitos e fracassos.
Nos meses seguintes, ainda tentei ver a mulher, pula-
va de um clube para outro, os lupanares de Manaus. Até
hoje, sinto ânsia só de lembrar.
Tia Mira dizia que eu estava babado de amor. Estás
11

tonto por uma mulher, ela ria, observando meu devaneio
triste, meu olhar ao léu.
O Tarso não quis conversar sobre aquela noite. Foi o
primeiro a se afastar da turma: teve de abandonar a escola,
queria ser prático de motor, ou, quem sabe, capataz numa
fazenda do Careiro.
Três anos depois, meus tios Mira e Ran mudaram de
bairro; os encontros com meus amigos tornaram-se fortui-
tos, minha vida procurou outros rumos. O único que cru-
zou o meu caminho foi Minotauro; cruzou por acaso,
quando eu saía do bar Mocambo e ele ia visitar um amigo
no quartel da Polícia Militar. Estava fardado, era soldado
SI e se preparava para o exame de suboficial da Aeronáu-
tica. Servia na base terrestre, de guerras na selva. Não que-
ria voar.
Sou homem com pés no chão, ele foi logo dizendo. É
emocionante a gente se perder na mata, os perigos me
atraem, mano. A gente entra na floresta, escuta os ruídos
da noite e a noite é escura que nem o dia. É um desafio.
Toda a cambada tem que caminhar naquele ziguezague
escuro, dormir sem saber onde está, matar os bichos e en-
contrar a saída para a sede do comando.
Falava com desembaraço, cheio de si, alisando com os
dedos grossos a boina azul. O rosto continuava assombra - <
do, quase feroz, e a risada saía que nem uivo. Ele havia
topado com o Gerinélson:
O leso do Geri viajou para São Paulo. Quer ser doutor,
médico de mulher. Quer se aproveitar delas, riu o Minotau-
ro, tenebroso, mostrando dentes de cavalo. Tu nem sabes ...
O Geri sempre foi sonso, andou pelo Varandas antes da
gente, sempre foi caído por mulheres de todas as idades.
Dei um risinho chocho, sem vontade. Minotauro já
12

era meu ex-amigo? Está em outro mundo, nossos pensa-
mentos não se encontram. Foi o que eu remoí naquele
instante.
E o Tarso?
Mais pobre do que eu, ele disse. Deve estar caído por
aí. Pobre pobre não se levanta, mano. Nem soldado o coi-
tado do Tarso pode ser.
O Minotauro me tratou com carinho. Não sei se na-
quele dia eu tive pena ou raiva dele. Desprezo, talvez.
Ele se despediu com um abraço forte, de estalar as
costelas. Era socado, um monstro. Pôs a boina na cabeça e
saiu andando, desengonçado, cumpridor de deveres.
Anos depois, num fim de tarde, eu acabara de sair de
uma vara cível. e passava pela avenida Sete de Setembro.
Divagava. E já não era jovem. A gente sente isso quando
as complicações se somam, as respostas se esquivam das
perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas atrás
da porta. As gandaías. os gozos de não ter fim, aquele arro-
jo dissipador, tudo vai se esvaindo. E a aspereza de cada
ato da vida surge como um cacto, ou planta sem perfume.
Alguém que olha para trás e toma um susto: a juventude
passou.
Quando andava diante do Palácio do Governo, decidi
descer a escadaria que termina próxima à marger,n do iga-
rapé; parei no meio da escada e me distraí com a visão dos
pássaros pousados nas plantas que flutuavam no rio cheio.
Foi então que vi, numa canoa, um rosto conhecido. Era
Tarso. Remou lentamente até a margem e saltou; depois
tirou um cesto da canoa e pôs o fardo nas costas, a alça em
volta da testa, como faz um índio. O corpo do meu amigo,
curvado pelo peso, era o de um homem. Subiu uma esca-
dinha de madeira, deixou o cesto na porta de uma palafita.
13

voltou à margem e puxou a canoa até a areia enlameada.
À porta apareceu uma mulher para apanhar o cesto. Rea-
pareceu em seguida e acenou para Tarso. Num relance, ela
ergueu a cabeça e me encontrou. Estremeci. Eu ia virar o
rosto, mas não pude deixar de encará-Ia. Ela me atraía, e a
lembrança surgiu agitada, confusa. A voz dela chamou:
Meu filho! A mesma voz, meiga e firme, da moça, da mu-
lher da casinha vermelha, no balneário Varandas da Eva.
Era a mãe do meu amigo? Isso durou uns segundos. Por
assombro, ou magia, o rosto dela era o mesmo, não enve-
lhecera. Mal tive tempo de ver os braços e as pernas, a
memória foi abrindo brechas, compondo o corpo inteiro
daquela noite.
Tarso escondeu a canoa entre os pilares da palafita, e
entrou pela escadinha dos fundos. A mulher já tinha su-
mido.
Permaneci ali mais um pouco, relembrando ...
Nunca mais voltei àquele lugar.
14
=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=

Dançarinos na última noite

Para Marcia e Jorge Bodanzky

Quando se casaram em abril de 1988, Porfíria e Miral-
vo foram morar nos fundos da mansão de um cambista.
Não gastavam um centavo para dormir na edícula e comer
na cozinha da casa-grande. Dois anos depois, receberam
uma notícia que os deixou abalados: o patrão decidira mu-
dar-se para Brasília.
Ela ganhava um salário mínimo para cozinhar e lim-
par a casa. Aos sábados, Miralvo cuidava do jardim e fazia
o supermercado; arrumava as compras na despensa e na
geladeira e punha o recibo e o troco em cima da mesa da
sala. Esse zelo moral fez do marido de Porfíria um homem
de confiança. Então Miralvo passou a entregar um pacote
lacrado na casa de clientes do cambista. Ele ia de táxi, e
seguia as instruções do patrão: Vá direto ao endereço de-
terminado e não converse com o motorista; deixe a enco-
menda nas mãos da pessoa indica da; nunca abra o pacote.
Miralvo obedecia, mas apalpava o pacote e fechava os
olhos, com ar sonhador. Fez dezenas de entregas em bair-
111

ros diferentes, em casarões com jardins, quadras de espor-
te e piscina, em casas modestas de Petrópolís. Redenção e
Glória, e até em barcos ancorados no porto da Panair. As
entregas eram feitas de segunda a sexta e sempre à noite,
quando Miralvo voltava de seu trabalho numa fábrica ja-
ponesa.
Ele pegava o ônibus antes das cinco e chegava às sete
e meia na fábrica, onde tomava o café-da-manhã. Ganha-
va dois salários mínimos e, como o casal não gastava em
comida nem aluguel, Miralvo já havia adquirido aparelhos
de som e TV, e Porfíria podia comprar roupa, discos, um
perfuminho.
No Natal de 1989, depois de receberem o décimo ter-
ceiro, Porfíria sugeriu: Vamos passar o Ano-Novo num
motel chique, amor? Muito caro, ele disse. Uma fortuna.
Deixa de ser pão-duro, Miralvo. A gente leva o aparelho
de som e se diverte.
Foram de táxi ao Flor do Paraíso. Porfíria, a primeira a
entrar no quarto, se surpreendeu: Que luxo, banheiro com
piso de granito, as torneiras douradas, essa piscininha lin-
da. Olha só nós dois lá em cima, disse Miralvo, apontando
o espelho no teto. É o paraíso, amor. Capricha, hein? De-
ram adeus ao ano velho namorando e dançando, e às ve-
zes riam da imagem dos dois refletida nas paredes, também
espelhadas.
Viviam assim desde que se casaram num Sábado de
Aleluia. Agora a notícia da viagem para Brasília inquietava
Porfíria. Quem sabe a gente não vai morar na capital", ela
perguntou a Miralvo. Só se tu falares com o homem, eu
não tenho coragem, ele disse.
Numa sexta-feira, logo depois do almoço, ela disse ao
112

patrão que gostaria de trabalhar com ele em Brasília. O
homem concordou: desde que ela fosse sozinha.
Sozinha?
Isso mesmo. Vou morar num apartamento, o quarto
de empregada é pequeno, e eu não quero morar com um
casal.
Porfíria ficou pensativa; recordou que, antes de co-
nhecer Miralvo, ela dançara com os amigos do patrão, po-
líticos de outros estados e até uns americanos de Miami.
Ela os levava aos clubes dos Educandos e da Cidade Nova,
onde os ensinava a dançar carimbó e forró. Ganhava rou-
pa nova do patrão, roupa cara, mas essa mamata acabou
quando ela casou com Miralvo.
E então, vamos morar na capital?
Sem Miralvo não arredo o pé de Manaus, ela disse,
com tristeza. O cambista acariciou o queixo dela e riu: Isso
é que é amor, Porfíria.
Na mesma sexta-feira, Miralvo voltou da fábrica com
uma péssima notícia: perdera o emprego para um robô ja-
ponês. O cambista chamou o casal e disse: Não vou deixar
vocês na rua. Peguem um barco amanhã mesmo e vão
conversar com o gerente de um hotel de selva, o New Ho-
rizon. Já falei com o cara, agora é só trabalhar.
Na manhã do sábado, quando se despediram do pa-
trão, ela chorou; o homem abraçou-a, beijou-a no rosto: A
vida é assim, Porfíria. E apertou a mão de Miralvo: Cuida
da tua mulher, rapaz.
O N ew Horizon era uma torre de madeira e vidro à
margem do lago do Ubim. O gerente perguntou o que Mi-
ralvo sabia fazer. Qualquer serviço, ele disse. Qualquer
trabalho que um robô não dá conta. Sabes remar? Claro,
113

ele disse. E dançar que nem índio? Sei, sim, disse Miralvo,
quase num susto.
De manhã cedo, Miralvo levava um grupo de turistas
estrangeiros para passear de canoa no lago do Ubim. Pes-
cava com eles, falava dos botos, do rio, contava lendas. Um
intérprete traduzia para o inglês e, quando um turista não
entendia inglês, Miralvo gesticulava, fazia mímica; depois
do almoço, ele caçava e pescava, e vendia por uma pechin-
cha peixe e carne de caça para o restaurante do hotel. Às
vezes, para ganhar uns trocados, ele passeava com uma
cobra viva no bar do hotel, ou então pendurava bananas
nos braços esticados para atrair macacos e divertir as crian-
ças. À noite os mesmos turistas do passeio matinal viam
Miralvo dançar no salão de festas do New Horizon. Poucos
o reconheciam, porque o corpo do dançarino estava pinta-
do com figuras geométricas. Com um pouco de sorte, em-
bolsava dois ou cinco dólares de hóspedes estrangeiros,
que jogavam a cédula numa cuia. Durante o verão no he-
misfério norte, a gorjeta aumentava e dobrava o salário.
Ele se deixava fotografar com um grupo de hóspedes sorri-
dentes dos Estados Unidos, Japão ou Alemanha, e mal se
reconhecia nas imagens que lhe enviavam: Miralvo com
um cocar de penas de gavião, o peito e o rosto pintados
com sumo de urucum, os pulsos e tornozelos enfeitados
com plumas de garça e ararinha. Ele quis imprimir um
cartão-postal com a sua melhor foto, poderia vendê-lo aos
hóspedes, mas desistiu quando soube o preço da gráfica.
Depois de trabalhar cinco meses como arrumadeira,
Porfíria foi transferida para a cozinha, onde ajudava a la-
var louça e servir o café-da-manhã. Ela e Miralvo mora-
vam numa casinha de madeira no outro lado do lago; de-
pois da dança indígena, os dois viam os turistas beber
114

uísque e caipirinha, e sambar com passos atropelados. Mas
queriam mesmo era assistir aos shows com músicos do Ca-
ribe e dançar. Lá de baixo, viam o salão iluminado do New
Horizon, escutavam os sons abafados e dançavam na beira
do lago, à luz da lua, de costas para a floresta.
Porfíria aprendera a dançar música caribenha com
uma amiga colombiana, casada com um suboficial do
Exército. Foi numa festa no clube dos sargentos que ela
conheceu Miralvo; quer dizer, ele olhou a moça dançar
salsa e cúmbia, e na mesma noite aprendeu os primeiros
passos, pegou o jeito, se entusiasmou. Ela dançava com
graça e enxerimento, o corpo empinado requebrava com
ritmo, os passos leves no compasso certo. E que rebolado,
que voz. Ela e a amiga cantavam em espanhol, mas Miral-
vo só ouvia Porfíria, que ele mal conhecia e já estava en-
ciumado. Não a largou mais. Depois de três meses de na-
moro pularam da salsa cubana para o altar e festejaram o
casamento num pagodão da Vila da Prata. Compravam
discos nas tendas dos camelôs da Matriz e, no tempo em
que moraram na casa do cambista, iam aos sábados aos
rala-buchos da Compensa e da Cachoeirinha. Agora, no
New Horizon, sentiam falta das noites de Manaus.
Quando Porfíria tentou assistir ao show de uma banda
de Georgetown, foi barrada na entrada do salão: só hóspe-
de podia entrar. Ela se sentiu humilhada, e no dia seguin-
te, hora do almoço, chamou Miralvo e foram falar com o
gerente. Quando passavam pelo lobby, viram o ex-patrão
entre duas mulheres. Estava mais elegante, embora mais
gordo, mais perfumado e muito mais risonho. Porfíria
abriu os braços, fez festa, quis saber se ele estava gostando
de Brasília. Muito trabalho, ele disse. E vocês, estão gos-
tando do New Horizon? Dá pra viver, ela respondeu. Mas
115

não deixam a gente ver os músicos da Guiana. O senhor
pode ajudar? O cambista riu: Porfíria, tu não tens jeito
mesmo. Vou resolver isso.
Um homem se aproximou, Miralvo o reconheceu e
desviou o olhar, com medo de estragar o encontro. O show
vai até sábado, disse Porfíria. Podem vir sábado, eu mesmo
vou falar com o gerente, disse o homem.
Ela agradeceu beijando-lhe a mão, e no sábado pôs
uma roupa que ela só usara em Manaus. Como o show
começava depois da dança indígena, Miralvo foi tomar ba-
nho em casa e se vestir; às dez da noite Porfíria perguntou
pelo cambista no lobby do hotel.
Foi embora hoje cedo, disse um funcionário.
Hoje cedo? Mas ele não deixou os nossos convites pa-
ra o show?
O hóspede não deixou nada.
Porfíria pôs as mãos na cintura e encarou o funcioná-
rio: Nada? Doleiro safado, sem palavra.
Não puderam assistir ao show e voltaram em silêncio
para a beira do lago; Miralvo quis pôr um disco, mas es-
quecera de comprar pilhas novas. Nem luz elétrica tem na
porra dessa casa, ele desabafou.
E se a gente voltar pra Manaus?, disse Porfíria. Pode-
mos vender bugigangas no centro e artesanato na porta
dos hotéis chiques. Ou conseguir serviço numa fábrica.
Mesmo se a gente conseguir, não dá, Porfíria. Sabes
onde vamos morar? Num barraco de área invadida, sem
água nem luz. E ainda vamos ter que andar até o asfalto
para pegar dois ônibus.
Peço um dinheirinho da minha amiga colombiana, ela
sugeriu.
116

Que dinheirinho? Tua amiga não trabalha, e o marido
dela é sargento, mal tem pra comer.
Numa manhã de outubro, rio baixo e calarão, Miralvo
não encontrou a paca que caçara depois do almoço. Não
viu rastros de onça no lugar onde deixara o animal. Ia ga-
nhar uns trocados com a carne do bicho, se enraiveceu,
até naquele lago tinha ladrão! Caminhou pela canarana
alta e parou próximo da floresta. Em seguida rondou par
ali, intrigado. Quando voltava para a beira do lago, viu o
corpo do monstro, tu fado ainda, só o fim da cauda enrola-
da. Era enorme, e ele se animou: turista gostava de pele de
cobra para enfeitar a sala. Com um terçado, Miralvo gol-
peou com força a cabeça da jibóia, depois deu pauladas na
mandíbula ferida e, enfurecido, furou-lhe os olhos com a
ponta de aço e decepou -lhe a cabeça. Queria a paca de
volta. Esperou a raiva passar e rasgou a pele da cobra com
gestos de artesão, sem pressa. Encontrou a paca estraça-
lhada, dois sapos apodrecidos, cinco pulseiras de plástico,
uma boneca sem cabeça e uma carteira de couro. Largou o
terçado, as mãos trêmulas abriram a carteira: um maço de
dólares, notas umedecidas. Novinhas! À noite ia fazer uma
surpresa para Porfíria. Limpou as cédulas verdes e secou-
-as no piso da palafita; recontou três vezes o dinheiro,
atrapalhando-se com os números, refazendo a soma com
uma alegria alucinada. Escondeu o maço numa lata velha
de querosene.
Naquela noite ele dançou com passos exagerados, pu-
lando que nem cabrito, gargalhando à toa. Depois da dan-
ça indígena, o gerente perguntou a Miralvo se ele bebera
cachaça. Parecia um bêbado no salão. Não bebo quando
trabalho, ele disse. A dança é coisa séria.
Em casa, Porfíria beliscou o braço do marido: Por que
117

tanta alegria, amor? Ele tirou os dólares da lata de quero-
sene e focou a lanterna na pele da jiboia. esticada na beira
do lago. E contou seu plano: comprariam um sítio na vár-
zea do Careiro, criariam porcos e galinhas, plantariam
mandioca, frutas.
Ela discordou: queria ver os músicos e dançar.
E o nosso futuro?
Esse dinheiro não dá futuro, só prazer.
Discutiram. Miralvo ainda argumentou: uma espingar-
da para caçar, uma canoa, um motorzinho de popa chinês.
E depois, amor? Tudo isso acaba: a arma, a canoa, o
motorzinho. O prazer dura uma noite, mas a lembrança é
para sempre.
Iam brincar com a sorte?
Porfíria não arredou o pé: A gente vai é se divertir,
isso sim. Sorte é nascer em berço bom e poder estudar.
Porfíria soube que El Gran Combo da Colômbia faria
um show no dia 15 de novembro. Quando ela reservou
uma noite na suíte imperial do N ew Horizon. o gerente
perguntou onde a empregada tinha conseguido tanto di-
nheiro.
No bucho de uma jíboia, mano.
Na véspera do show. eles foram a Manaus e passaram
uma tarde no Barateiro dos Educandos. Porfíria escolheu
para ele um par de sapatos, uma camisa vermelha, uma
calça jeans. E comprou para ela um vestido estampado
com um decote escandaloso em forma de coração, um par
de sandálias de couro e um estojo de maquiagem.
Ao meio-dia de 15 de novembro, quando entraram na
suíte imperial, ela se jogou na cama e lembrou em voz-alta:
Arrumei mil vezes esse quarto de rainha.
Amanhã vais lavar pratos e panelas, disse Miralvo.
118

Mas é hoje que a gente vive, amor.
Ao ver o El Gran Combo no palco, Porfíria aplaudiu
de pé, enquanto Miralvo ainda lamentava os dólares es-
banjados; mas, quando os músicos gritaram: A bailar, a bai-
lar, ela o agarrou pela cintura e o par deu vários volteios
até o meio do salão. No fim da primeira cúmbia Miralvo já
era outro: o mesmo das noites de Manaus. Os hóspedes
abriram espaço para os dois dançarinos, tentavam imitá-
los com timidez, fotografavam, filmavam. Porfíria girava e
requebrava, cantava as canções que sabia de cor, agradecia
os aplausos com as mãos juntas sobre o decote. Já tarde da
noite, alguns hóspedes saíram do salão, outros dormiram
debruçados na mesa, mas Porfíria e Miralvo não pararam.
Quando o lago escureceu mais que o céu, os músicos
anunciaram um bolero para o casal bailar apechuqado, To-
caram "Toda una vida", e os dois, abraçados, molhados de
suor e prazer, dançaram devagar, de frente para o lago e a
floresta, oscilando na noite que teimava não ter fim.
119

=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=

MILTON HATOUM

Nascido em Manaus em 1952, Mil-
ton Hatoum estudou arquitetura. En-
sinou literatura brasileira na Univer-
sidade Federal do Amazonas e na
Universidade da Califórnia, em Ber-
keley, e estreou na ficção com Relato
de um certo Oriente, publicado em
1989 e vencedor do prêmio Jabuti de
melhor romance do ano. Seu segundo
romance, Dois irmãos (2000), mereceu
outro Jabuti e foi traduzido para oito
idiomas. Com Cinzas do Norte (2005)
Hatoum ganhou os prêmios Jabuti,
Bravo!, APCA e Portugal Telecom.
Em 2008, publicou Órfãos do Eldo-
rado. A cidade ilhada é sua primeira
coletânea de contos. Atualmente, é
colunista do Estado de S. Paulo e do
Terra Magazine.


NOTAS SOBRE A OBRA “A CIDADE ILHADA”, de MILTON HATOUM

Os contos breves de A cidade ilhada lançam seus per-
sonagens num vaivém incessante e vertiginoso, vivido
ou apenas imaginado, entre Paris e Bangcoc, Barcelo-
na e Berkeley, num movimento insuflado pelo desejo
mas, cedo ou tarde, barrado pelas muitas figuras que o
destino sabe assumir: o desencontro, o exílio, a provín-
cia, o fantasma materno ou, resumindo e consumando
todos estes, simplesmente Manaus, onde tudo nasce e
tudo morre no universo literário de Milton Hatoum.
Sobre Cinzas do Norte
"Dois irmãos confirmou Hatoum como um dos maiores
romancistas da América do Sul. Em Cinzas do Norte,
a derrota de uma geração e sua transcendência moral
dão ao romance uma amplitude épica."
Maya J aggi, The Guardian
"Com Cinzas do Norte, Milton Hatoum, apesar de sua
obra até então bastante reduzida, se estabelece de-
finitivamente como uma figura central da literatura
brasileira contemporânea."
Florian Borchmeyer,
Frankfurter Allgemeine Zeitung
'"
"Tudo está ligado, ninguém é realmente livre, e quem
tenta escapar é derrubado como uma árvore. Cinzas
do Norte é uma obra de escrita poderosa."
Laura Thompson, The Telegraph